02/09/2010


UMA BOLA DE BERLIM NA PRAIA



Convenhamos: a bola de Berlim é, objectivamente, um bolo vulgar, pedaço de massa frita, recheado de creme amarelo e coberto de açúcar. Não tem a elegância dos scones (claramente um manjar de inverno, barrados de compota de framboesa e acompanhados de uma chá preto forte), a ligeireza dos queques (que casam bem com um galão numa pastelaria da esquina), a dimensão literária das madalenas (recheadas de proustianas recordações de infância e traumas por resolver) ou o requinte dum mil-folhas (para comer com um garfo, numa esplanada outonal, enquanto se observa o nada que passa).

Uma bola de Berlim come-se na praia ao final da tarde, quando a luz do sol – mais dourada, quase terna, menos altiva – salpica os despojos do dia; quando o areal está vazio e partiram os “burgueses neo-barrocos”, de que fala a Agustina.

As bolas de Berlim da praia são ligeiramente azeitadas, têm assim um toque de gordura que não se encontra noutras. Pega-se nelas com um guardanapo de papel branco, daqueles semi-transparentes que havia na esplanada das Arcadas do Estoril. Têm um trincar ligeiramente estaladiço. Depois, há o açúcar: não é aquele horrível açúcar em pó das pastelarias pretensiosas. É um açúcar grosso, com uma textura que não tem vergonha, que adere aos dedos com se fosse areia da praia. A bola que se desfaz no palato, que ali morre como fora de nós morre um dia que tem naquele momento a razão da sua existência, não é apenas um bolo. A bola de Berlim comida na praia é um acto de puro egoísmo. Vive só para e pelo dourado do sol, o silêncio do encantamento e o mar que se transforma do alheio absoluto que sempre é, na ponte que o tempo atravessa para, como diz a Sophia, reencontrar a liberdade. Nessa transformação, a que não somos alheios, prova-se que comer uma bola de Berlim na praia é, afinal, um acto litúrgico.

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