31/03/2011

Lisboa 1755 - Japão 2011: reler Voltaire


Logo em Dezembro de 1755, um mês depois do terramoto de Lisboa, pôs Voltaire seu doce Cândido a passear sobre as cinzas de uma Lisboa em pó: aquele que proclamara o melhor dos mundos - uma atitude que não era apenas pessoal mas uma postura de vida, um posicionamento filosófico banhado no ar do tempo - via agora abalado não apenas o chão que pisava mas as próprias estruturas de pensamento. Sabe-se o quão importante foi o sismo dessa madrugada de Todos os Santos para reformular a filosofia europeia na segunda metade do século XVIII.

Os tempos são outros, é certo; e outros são os homens, as latitudes, as crenças e as filosofias. Mas lembrei-me de Voltaire ontem quando vi imagens de casas, estradas e portos já reconstruídos e operativos, menos de 3 semanas depois do pior sismo da história do Japão. E não foi preciso um Marquês de Pombal - um visionário - a ordenar justiça e ditar a ordem. Os japoneses são resilientes e é nessa resiliência que reencontram o caminho que nós, ocidentais, nos apressamos a julgar perdido. Por aqui não se viram - como seria normal na Europa - dias de luto, cerimónias fúnebres, exercícios colectivos de exorcização da dor e do luto. E lembro: no momento em que escrevo são 27 500 os mortos e desaparecidos. Sofre-se na intimidade e renasce-se como povo.

Hoje fui reler Voltaire e ecoa-me sem cessar o seu verso em "Poème sur le désastre de Lisbonne" (capa em cima): Je suis comme un docteur ; hélas ! je ne sais rien.

30/03/2011


348 + 1 réplicas






Volto ao tema das réplicas: tudo aponta para que tenhamos de viver com elas durante bastante tempo e o melhor mesmo é criar habituação. Por razões higiénicas, há que mudar a água do copo-sismógrafo-improvisado mas não se vislumbra que o copinho possa ser devolvido ao armário onde habitualmente pernoita. Desde o dia 11 de Março, houve 348 réplicas de, pelo menos, escala 5 (posso garantir: o suficiente para acelerar um nadinha o ritmo cardíaco...).

Tenho andado a ler e o que aqui se vive corrobora: várias réplicas com intervalos de minutos ocorrem na hora subsequente ao grande sismo (bem o senti, eu e as centenas de pessoas que estavam no páteo da escola de Kojimachi, para onde fomos); aumento progressivo de intervalos nas 24 horas seguintes mas uma média de 30 minutos (assim foi: na primeira noite acho que ninguém dormiu em Tóquio); diminuição progressiva ao longo da primeira semana mas possibilidade de ocorrência de réplicas que podem ser de magnitude elevada (5 dias depois houve um sismo médio em Shizuoka). A tendência, dizem os especialistas, é - espero que não se enganem - de diminuição progressiva da intensidade das réplicas mas com a ressalva que podem continuar durante meses, senão mesmo anos.

Na 6ª feira passada, também tive a minha réplicazinha particular: estando num jantar com um francês, e virando por instantes a agulha da língua de Shakespeare para a língua de Molière (como diz o meu amigo PS), diz-me ele que, apesar de eu falar bem, nota-se um forte sotaque belga. Já é a segunda vez que me dizem isso em pouco tempo mas nunca tinha acontecido, como agora, ao fim de apenas 3 frases... Désolé. Ou como se diz em típico patois bruxelense: "xai pas vous aider"! Tirar o homem de Bruxelas é definitivamente mais fácil do que tirar Bruxelas do homem.

29/03/2011

O que salvaria de sua casa em caso de catástrofe?


No dia 11 de Março cheguei a casa já madrugada dentro. Ao chegar à porta do prédio, constatei que me era exigido mais um esforço: os elevadores não funcionavam, pelo que era preciso subir a pé. Comecei então a pensar sobre o que iria encontrar em minha casa. Isso já me tinha ocorrido vagamente durante a tarde mas sem tempo para reflexões profundas. Agora, ao subir umas centenas de degraus, ia passando em revista as possibilidades: livros derrubados das estantes não suscitam preocupação (e confirmou-se: estavam no chão mas incólumes), quadros caídos das paredes implicam no máximo molduras ou vidros partidos (assim foi: um vidro rachado), jarras ou objectos decorativos são sempre substituíveis (uma jarra partida efectivamente), loiça feita em cacos tem destino evidente (nem um copo se partiu), molduras podem cair mas não se estragam (apenas uma moldura descolada). Pensei, em breves segundos: os estragos não podem ser muitos.

Na verdade, a única coisa que me preocupava era o computador portátil. Se pensarmos no valor individualmente considerado, nem é o "objecto" mais caro que tenho em casa. Mas pensar que poderia estar danificado foi motivo de alguns minutos de angústia: são centenas de fotos dos últimos anos (já gravei todas em CD à cautela...), documentos, projectos e textos em que estou a trabalhar (já fiz backups em vários sítios), é a linha skype para falar para o mundo, os meus mails a qualquer hora do dia ou da noite, a janela do FB, o twitter, a possibilidade de trabalhar em casa, o estar contactável em permanência (o que foi fulcral nesta crise)...

Quando abri a porta, corri para a mesa de trabalho: o meu laptop estava tranquilamente firme no sítio onde o tinha deixado de manhã. Indiferente aos livros pelo chão, à jarra feita em cacos e ao saco do lixo espalhado na cozinha. O mundo continuava à distância dum teclado.


28/03/2011

Máscaras, mascarilhas, medo nuclear e a rainha Santa Isabel


Mais de duas semanas depois do sismo de 11 de Março, a grande preocupação que chega à Europa é a radioactividade. O problema existe? Sem dúvida que sim. Mas longe, muito longe, da forma como é retratado na comunicação social europeia. Alguns dados objectivos para sossego lontano: o nível de radioactividade em Tóquio é, apesar de acima do que era antes do problema com a Central de Fukushima, muito baixo. A semana passada, o nível em Tóquio era equivalente a algumas capitais europeias e mesmo abaixo de algumas delas. Para os mais desconfiados, acrescento que são dados de medições europeias e não japonesas.


Isto é notícia? Não é. E como não há nada de mais excitante (uma guerrazita na Líbia não vende tão bem como um "apocalipse nuclear" - palavras da Newsweek a cavalgar declarações bombásticas de responsáveis bruxelenses), eis agora que a excitação anda em torno das pessoas em Tóquio que usam máscara.

A ver se nos entendemos com isto: em Tóquio, e na Ásia em geral, o uso da máscara no espaço urbano generalizou-se há muito. Em primeiro lugar por causa do receio de vírus e doenças (a célebre gripe SARS teve um papel fulcral aqui). Depois, por uma questão de civismo. Qualquer pessoa que esteja constipada ou numa ressaca de gripe põe de imediato uma máscara para evitar contaminar quem está à volta (as pessoas aqui vivem muitas vezes compactadas no metro ou no local de trabalho). Depois, de há uma semana para cá, viu-se, efectivamente, um aumento das máscaras. Medo do nuclear? Não. Medo do pólen. A primavera está a começar em força, há milhares de flores a despontar e há nuvens de pólen que provocam alergias. Para se protegerem, as pessoas usam a máscara preventivamente, em vez de se enfrascarem em anti-estamínicos posteriormente. Finalmente: uma revista trazia outro dia (antes do terramoto) uma reportagem onde se explicava que o uso desta máscara se tornou uma espécie de moda entre grupos de adolescentes e jovens, um sinal de tribo, marca distintiva que confere ao grupo um signo próprio e que mascara uma timidez por vencer.

Por isso, quando virem prosa debitada por pena europeia que descreve um povo amedrontado pelo inimigo invisível que vem de Fukushima, desconfiem. Não é o nuclear. Como diria a rainha Santa Isabel: são as rosas, Senhor.

27/03/2011


DOMINGO DE VERSOS - ANTÓNIO RAMOS ROSA



O mundo inteiro assim cabe num limbo


e é como um eco límpido


e uma folha de sombra que no vagar ondeia entre minúsculas luzes


E é astro imediato de um lúcido sono fluvial


e um núbil eclipse em que estar só é estar no íntimo do mundo



António Ramos Rosa, in Poemas Inéditos


26/03/2011

A NORMAL SATURDAY - 15 DAYS AFTER THE EARTHQUAKE

For the first time since March 11th, I can go out and buy the...



... as well as some...


I finally enter a bookshop to see the new arrivals...



...and seat for a coffee.



But still, I am not more than 10 minutes without checking my...

25/03/2011


AS MÚLTIPLAS LEITURAS SOBRE O FUMO BRANCO



Num grupo antes de começar uma reunião: eu e os colegas sueco, finlandês, dinamarquês, irlandês e espanhol. O sueco lê do iPhone as últimas notícias da Central de Fukushima: durante várias horas saiu fumo negro do reactor 2 mas na última hora, transformou-se em fumo branco (o que é um bom desenvolvimento). Alguém diz:

- Well colleagues, habemus papam...

O espanhol, o irlandês e eu rimos até às lágrimas perante o ar atónito dos nórdicos.

Sou laico até à medula mas convenhamos que isto de representar uma nação de história fidelíssima tem que se lhe diga. Uns percebem, outros não.

24/03/2011


Muitas teses, algumas antíteses e todos os dias em busca da síntese



É difícil gerir a informação, separá-la dos rumores, contrariar a contra-informação, distinguir factos de opiniões e ver para lá do muito nevoeiro que estes dias têm produzido. Diz-se de tudo em todos os sentidos porque todos estamos diplomados à pressa em ciências que há escassas duas semanas faziam para todos parte do domínio do ocultismo. Hoje todos os “toquioitas” sabem o que são os becquerels, os microsieverts, o iodo 131, os raios gama e a fissão nuclear. Há quem diga que fervendo água ou filtrando-a se diminuem os níveis de becquerels mas há quem diga o contrário. Há quem beba água e há quem nem a cheire. Há quem ande de metro e quem tenha medo de estar “lá em baixo”. Há quem diga que o pior já passou e há quem durma vestido por receio de ser apanhado em fuga de pijama. Há quem mantenha um semblante carregado e quem consiga dar gargalhadas. Há quem comece todas as frases com “eu estou calmo mas...”, há quem coma compulsivamente, há quem emagreça com os nervos. Há quem fale de energia nuclear como os comentadores televisivos falam de não-importa-o-quê: com a segurança que impressiona os incautos de mãos dadas com a leveza dos neófitos. Tóquio, por estes dias, fez-me lembrar Cesare Pavese, no poema "Wind of March":


Sei la vita e la morte.
Sei venuta di marzo
sulla terra nuda -
il tuo brivido dura.
Sangue di primavera
- anemone o nube -
il tuo passo leggero
ha violato la terra.
Ricomincia il dolore.
Il tuo passo leggero
ha riaperto il dolore.
Era fredda la terra
sotto povero cielo,
era immobile e chiusa
in un torpido sogno,
come chi più non soffre.
Anche il gelo era dolce
dentro il cuore profondo.
Tra la vita e la morte
la speranza taceva.


DIAMONDS ARE FOREVER

Elisabeth Taylor (1932 - 2011)

23/03/2011

Um sismógrafo dentro do peito



O meu colega sérvio foi o primeiro a confessar: I am always feeling earthquakes. Depois dele, todos admitiram o mesmo. Fui ver o que se diz na literatura especializada e parece que esta reacção é vulgar a quem passa pela experiência dum grande terramoto. Por um lado, desenvolvemos uma hipersensibilidade e, por isso, detectamos as réplicas como se tivéssemos um sismógrafo dentro do peito. Por outro lado, há um factor psicológico que faz com que estejamos a ver terramotos onde eles não existem. Era justamente a este segundo caso que se referia o meu colega sérvio perante o olhar concordante de uma plateia que não ousara verbalizar o mesmo. Dar uma ordem de impressão de um documento faz tremer a mesa, logo, terramoto. Passa um autocarro, o chão treme, logo, terramoto. O vento abana as árvores, logo, terramoto. Estamos todos aqui a fazer um curso acelerado de sismografia e, na impossibilidade de ter aparelhos sofisticados em casa, todos recorremos ao mesmo artefacto: um copo com água em cima da mesa para o qual se olha. Se a água começa a mexer, é mau sinal. Mas também é verdade que esta hipersensibilidade vai de mãos dadas com uma resistência a que todos nos habituámos já. Como dizia um outro colega, “por menos de um grau 4 já nem me levanto da cadeira”.

22/03/2011

SISMO NO JAPÃO - Percepções



Aquilo que se viveu em Tóquio no dia 11 de Março às 14h46 é uma experiência que não desejo a ninguém. E não posso imaginar o que terá sido estar em cidades como Sendai ou Fukushima onde o sismo se sentiu de forma ainda mais forte e onde um tsunami (mais do que o sismo) semeou a morte.

Quem aqui vive sabe que à distância, na Europa, também as pessoas viveram coladas à TV e à net seguindo uma dor distante que se fazia própria e que a distância acentuada cavou em angústia. Isso percebe-se bem. O que se percebe menos é a onda de histeria, sensacionalismo, exagero e falta de rigor que perpassou na comunicação social europeia (já para não falar da irresponsabilidade de dirigentes políticos a falar de “apocalipse”). Vi directos na TV portuguesa onde se falava insistentemente de Chernobyl (a comparação não tem nada mas mesmo nada a ver do ponto de vista técnico) e se elencavam as ameaças a que Tóquio está sujeito, referindo o Monte Fuji (o Monte Fuji???). Li bloggers encartados a dizer que em Tóquio foram encerradas 200 linhas de metro (Tóquio tem 15 linhas de metro e, tirando nas horas imediatamente a seguir ao sismo, estiveram sempre a funcionar) e que Tóquio é uma cidade-fantasma (há milhões de pessoas a passear e às compras).

Sei de vários portugueses aqui residentes que falaram para as TV’s e jornais e que transmitiram justamente uma nota contrária: sem negar a gravidade da situação, sublinharam (e muito bem) o regresso progressivo a uma certa tranquilidade, aos ritmos da vida quotidiana que – sem dúvida – está afectada mas que se impõe com o passar das horas.

Mas sei também de um caso de uma portuguesa que, contactada por um jornalista não-português (sublinho: não português), explicou que poderia dar o seu testemunho relativamente à serenidade com que tudo está a ser vivido e ao facto de Tóquio praticamente não ter problemas. Responderam-lhe: “OK, deixe estar, vamos contactar outra pessoa”.

21/03/2011

RECENTRAR O OLHAR NO BELO (II) - Os Japoneses face à tragédia



Da página do FB de uma cidadã portuguesa em Tóquio, com a devida vénia:

« My 86yr-old neighboor rang my door this morning to check if I was OK: thought I might be scared bcause Im gaijin and not used to all this. She brought me tangerines and told me to stock on food/water. First time I cried since this all started.
Thanks, Kawada san: you just made it totally worthy being here. I'm honoured and humbled to share this country with you. »

gaijin=estrangeiro


20/03/2011

RECENTRAR O OLHAR NO BELO



10 dias depois duma tragédia avassaladora, reparo que numa árvore ao pé da embaixada as flores da primavera já se fazem anunciar.

16/03/2011

TREMOR DE TERRA NO JAPÃO

Para os que acompanham este blog, só uma palavra para dizer que estou bem e que voltarei a "blogar" quando a situação acalmar. Por agora, muito trabalho e poucas horas de sono. Até já.

13/03/2011

Domingo de versos - Mário Cesariny




Ama como a estrada começa


Mário Cesariny

11/03/2011

Futebol Filosófico




Dei com este video por acaso há dias e não posso deixar de o partilhar porque é delicioso. Mas não é pura ficção de bons humoristas – ainda há dias me comentavam que numa universidade brasileira, o departamento de filosofia organiza, entre os professores, um jogo de futebol semanal chamado “pelada ontológica”.

10/03/2011


Sobre a importância dos anúncios eróticos numa revista literária



Há dias, numa longa viagem de Shinkasen (o combóio-bala), li o New York Review of Books que mão amiga (obrigado LC) me enviou da Europa. Chegado às páginas finais, dou com duas páginas de anúncios e uma coluna de “serviços pessoais”. À cabeça, este texto:

Erotic, intelligent, imaginative conversation. Uninhibited telephone exploration of your sexual fantasies. Discretion assured. Julia

Dei por mim a pensar que percebi o que falta no nosso lusitaníssimo JL: uma página de anúncios eróticos. Isto de pensar que os homens de letras não têm escondidos dentro de si os mais sórdidos pulsares sexuais é um moralismo bacoco mal disfarçado, herdado de salões de compostura só aparente. Conheço alguns intelectuais de espírito finíssimo e de avassaladora cultura, que não resistem a um certo tom badalhoco e à vulgaridade chavascal. Há aliás uma certa tradição literária muito portuguesa nesse domínio, que passa por Bocage e que, mais recentemente, teve expoente em Luiz Pacheco (já para não falar no celebérrimo blog O Meu Pipi, cujo autor nunca foi conhecido).

A ideia de anúncios eróticos numa publicação dirigida a um público intelectual é um mercado por explorar devidamente mas que talvez possa ter sucesso. Conheço alguém que dizia que podia aceitar tudo menos dormir com alguém que não soubesse comer à mesa. Estou certo que há quem pense nos mesmos moldes – tudo menos alguém que não saiba escrever uma frase como deve ser. Aliás, na mesma secção de “serviços pessoais”, havia um desabafo de uma tal Rebecca que admitia in today’s world it’s not easy to find somenone who can craft a well-written letter.

O amor é o domínio fecundo da improbabilidade. Amigos intelectuais: deixem-se de vergonhas. Para quem possa estar interessado, o número da Julia, autora do anúncio, é + 1 617 661 3849.

09/03/2011

Filhos da luta



Pronto: não resisto. Já todo o país opinou sobre a canção que vai à Eurovisão, também tenho de contribuir para este debate. A direita está horrorizada, já escondeu as jóias e fez reservas para o Brasil. A esquerda diz que não vê o festival mas está incomodada com a falta de qualidade musical dos rapazes.

Aqui vai o que eu penso em 5 pontos:

1. Parabéns aos «Homens da Luta» (a designação é machista mas a luta deles não quer saber disso). O festival da canção estava moribundo e ressuscitou. Já tinhamos saudades dos tempos de exegése das letras da Tourada, do Fernando Tordo, para perceber que ele se referia à "besta" (fascista). Volta Simone!


2. Dizem que aquela gente vai levar à Alemanha uma imagem de um país provinciano. Desculpem amigos, mas estamos a falar do Festival da Canção, não do Festival de Salzburgo. O Festival da Eurovisão é provinciano. Aquilo é um desfile de cançonetistas de aldeia, espécie de António Calvário reciclado mas com menos botox a descer a escadaria sob a orientação de um Eládio Clímaco que fala estrangeiro. O Festival da Eurovisão é uma TV Guia que foi fazer o Erasmus. Não queiram transformar a Eurovisão no Bayreuther Festspiele.

3. Vergonha? Vergonha são as taxas de iliteracia e a Biblioteca Nacional fechada durante um ano. Ou pensões de 300 euros em vilórios com 37 rotundas em 50 quilómetros quadrados. Vergonha é eleger por televoto o Salazar como o maior português de sempre.

4. A modernidade morreu e levou com ela a Dulce Pontes: os que se dizem modernos estão apavorados com medo desta rapaziada mas esqueceram-se (na verdade nem sabem) que este é um tempo pós-moderno, que não tem pejo em regressar às origens e fá-lo sem complexos porque sabe que só isso é verdadeiramente progressista (vejam as instalações da Joana Vasconcelos, é disso mesmo que se trata).

5. Finalmente, seria talvez inteligente parar dois segundos para perceber que este PREC cançonetista de mãos dadas com um neo-evangelismo de má qualidade musical tem uma dimensão sociológica a que importa estar atento. Tem a ver com a Geração Parva dos Deolinda, com os "quinhentoseuristas", com a novas redes sociais e com uma tensão de modelos que nem a Europa nem Portugal conseguiram resolver. E já agora, com a manifestação do próximo sábado em Lisboa.

Os Homens da Luta vão cantar para a Alemanha? Deixá-los ir. O pior que pode acontecer é virem de lá com a taça. E descansem, descansem: se isso acontecesse, não seria Bismark que dava voltas no túmulo. Era Karl Marx: o Jel e o Falâncio afinal renderam-se ao entretenimento burguês mais foleiro.


08/03/2011


O equívoco




Numa conversa que era de “estudo mútuo pluridimensional”:

- … a força da dimensão poética, esse rasgar da barreira entre o eu e o espaço envolvente é arrasador nos poemas dele. É um dos poetas da minha vida, um livro de cabeceira de sempre.
- Mas desculpa, estás a falar de quem exactamente?, perguntei eu, que estava ligeiramente distraído
- Do Ary dos Santos!
- Ah, ok...

Foi o fim inglório de algo que nunca chegou a começar.

07/03/2011


O bairro Kitano, em Kobe



Kobe é talvez a menos japonesa das cidades que já visitei: o porto, um dos maiores do Japão, foi dos primeiros a abrir-se ao exterior, em 1868, e ali assentaram homens de negócios e mercadores, comerciantes e industriais, diplomatas e viajantes. Era porto comercial de monta, com ligações a todo o mundo, desde Barcelona ao Rio de Janeiro, de Riga à Cidade do Cabo. Foi ali justamente que se instalou o nosso Venceslau de Moraes, como cônsul de Portugal. O bairro Kitano é das zonas mais interessantes da cidade, sendo ali que se instalaram os milhares de estrangeiros que constituíam o nervo central da vida comercial e industrial de Kobe na segunda metade de novecentos. Incapazes de viver em casas tradicionais e dormir em tatamis, os estrangeiros construíram todo um bairro com traçada europeia, hoje imaculadamente preservado e sucessivamente reconstruído por causa dos terramotos. Tem algo de artificial – o que é visível à vista desarmada por qualquer visitante – na paisagem habitual do Japão mas não deixa de constituir um bairro agradável, hoje transformado em atracção turística.


Esta casa foi construída em 1907 por um comerciante americano que então se instalou em Kobe, vindo da Europa. Foi destruída no tremor de terra de 1995 e reconstruída mantendo-se exactamente o traçado. Hoje é o Starbucks.

06/03/2011


Domingo de versos - Pedro Tamen



Amigo, a que Vieste?

Onde foste ao bater das quatro horas
e, antes, quem eras tu, se eras?
Amigo ou inimigo, posso falar-te agora
sentado à minha frente e com os ombros
vergados ao peso da caneta?
Falo-te sobre a cabeça baixa
e vejo para além de ti, no horizonte,
teus riscos e passadas;
mas não sei onde foste, nem se eras.
Olho-te ao fundo, sob o sol e a chuva,
fazendo gestos largos ou só um leve aceno;
dizes palavras antigas,
de antes das quatro horas,
e nada sei de ti que tu me digas
dessa cabeça surda.
Não te pergunto pela verdade,
que pensas de amanhã ou se já leste Goethe;
sequer se amaste ou amas
misteriosamente
uma mulher, um peixe, uma papoila.
Não quero essa mudez de condolências
a mim, a ti, ou só à terra
que tu e eu pisamos — e comemos.
Pergunto simplesmente se tu eras,
quem eras, e onde foste
depois que se fizeram quatro horas.

Será que não tens olhos? Não tos vejo.
De longe em longe
agitas a cabeça, mas talvez seja engano.
Palavra, não te entendo.
Amigo, a que vieste?

Pedro Tamen, in "Horácio e Coriáceo"

04/03/2011


O surrealismo em Tóquio



Tóquio é o exemplo daquilo que os franceses chamam o "embaraço da escolha": chega-se ao fim de semana e o problema é saber o que fazer quando a oferta é esmagadora. Há de tudo: exposições magníficas, concertos excepcionais, lojas novas, mercados e feiras para todos os gostos, festas sobre todos os temas.

O National Art Center é um dos meus espaços preferidos: não tem uma colecção fixa mas acolhe, permanentemente e em simultâneo, quatro ou cinco exposições do melhor que há no mundo de arte moderna/ contemporânea. Através da parceria com o Pompidou, trouxe agora para Tóquio uma exposição extraordinária sobre o surrealismo europeu. Começa com uma sala escura onde, no centro, está exposto o manifesto de 1924 de André Breton e depois continua com todos os nomes que se impõem: Max Ernst, Paul Delvaux (com quadros vindos do BOZAR, em Bruxelas), Juan Miró, Magritte, Picasso, M.Duchamp e mesmo o filme (que eu já tinha visto e de que não gosto) de Luis Buñuel, O Cão Andaluz. Passa-se em revista a história do surrealismo, com destaque para o salto trans-atlântico quando a Europa entrou em guerra. Nas obras expostas, percebe-se como e em que medida o surrealismo se transformou quando chegou a Nova Iorque a a Filadélfia.



Le Viol, Magritte

A exposição (fui no Domingo) estava a transbordar, com filas intermináveis e desesperantes. Mas tudo se passa na maior organização, sem atropelos e sem gritos: à entrada, para os incautos, fica feito o aviso. Abençoado povo.

03/03/2011


Gestão inventiva do espaço urbano



A solução nasceu do que, nos bancos da faculdade de direito, poderia ser um exemplo clássico de confrontação de direitos reais: por uma estória complicada de heranças e de duplas vendas, constatou-se que, relativamente ao mesmo terreno, havia uma licença de construção de um prédio e uma licença de construção de uma estrada. Os japoneses não se atrapalharam: construíram o prédio e ao nível do 3 - 5º andar fizeram um túnel onde atravessa a estrada.

Um must absoluto a visitar em Osaka.

02/03/2011

Os livros, esse amor continuado



Não compreender o prazer da leitura, é o mesmo que não compreender o prazer de nadar, ouvir música ou fazer amor.

Eduardo Prado Coelho



No sábado passado, Pacheco Pereira escreveu uma crónica interessante no "Público" sobre o papel dos livros na vida de um bibliófilo (dias depois da publicação geralmente é transcrita no blog). Tenta esboçar uma estatística do que é possível um leitor compulsivo ler ao longo da vida, avança com os seus próprios números (já terá lido, diz, cerca de 3500 livros e espera ler mais 1500 a 2000, num total de cerca de 5500) e elabora sobre aquela pergunta mais ou menos absurda com que todos os leitores compulsivos já foram confrontados: mas para que compras/ por que tens tantos livros? Não é demais explicar que um bibliófilo não compra livros para os ler. Compra livros para os ter. E depois irá tentando ler tantos quantos possível. A ratio que Pacheco avança (Almada dizia o mesmo e Eduardo Prado Coelho também), aponta para que um leitor com uma boa biblioteca terá cerca do dobro dos livros que leu. Julgo que no meu caso, também ando por essa proporção (mas é difícil dizer porque tenho livros espalhados - literalmente - por vários continentes...).

A partir da crónica do Pacheco, fui fazer a minha estatística, o que não é muito difícil porque desde 1993 que mantenho uma lista de todos os livros que li. Vejamos: nos últimos 18 anos li uma média de 54 livros por ano (era o que eu julgava "a olho", cerca de um por semana), embora com imensas variações: por volta de 35 livros/ ano em inícios/meados dos anos 90 (não contabilizo livros académicos e nessa altura estava na faculdade, além de que tinha menos dinheiro para comprar livros), subindo a partir de 2004, quando saí de Portugal (menos solicitações externas). O ano recorde é 2008, em que li 109 livros.

Se aos números do registo que mantenho (a "leitura-prazer", em sentido estrito), acrescentar os livros que li antes de 1993 (o início do registo), os livros que li na faculdade (licenciatura + mestrado), os livros que li para escrever a tese, os livros que li para escrever artigos publicados nos últimos anos, os livros que li por razões de trabalho e os livros que li mas não registei no meu caderno, creio que posso dizer que terei lido até hoje cerca de 1500 livros. O que me deixa dividido: por um lado, acho que sou um leitor assíduo, constante e compulsivo (com muito gosto). Por outro, acho que 1500 livros é muito pouco e os anos que me faltam (muitos, espera-se) não chegam para ler nem 10% daquilo que eu queria. Êrnani Lopes dizia sempre nas aulas: não vale a pena ler muito. Vale a pena ler apenas o que é muito bom. Confesso que não cumpro à risca.

01/03/2011

Notes on Kobe

1. Kobe became known for a bad reason - the 1995 earthquake caused more than 6000 casualties. 16 years later no sign is visible. Kobe lives its daily life as always but you can't help looking at their faces and wondering: where were you in that sad dawn?

2. Kobe City Museum: Wenceslau de Moraes was our consul here 100 years ago and this very interesting museum preserves some of Wenceslau's memorabilia, including the 1st edition of Culto do Cha. Also the famous namban screens and several jesuitic stuff (including a portrait of S. Francisco Xavier).

3. Kitano district - when Kobe opened its port in 1868, several European merchants, businessmen and diplomats settled in the northern part of the city, called Kitano. It is now a trendy area, with lovely preserved buildings and fine shops and restaurants. Photos will come at a later stage.