10/11/2010


ARRUMAR A BIBLIOTECA - gerir sensibilidades, amores e ódios



Comecei por abrir os caixotes de livros e fazer pilhas: literatura “pura” (dividida por grupos linguísticos), história, relações internacionais, arte, religião, viagens e ciências sociais e humanas (os principais grupos, tendo remetido os outros para a categoria “para que é que isto serve?”).

O mais difícil é a arrumação: que ordem seguir? Venceu a cronologia e a estante começa com as cantigas de amigo e amor. Depois tropeço em dúvidas: o que fazer com “n” estudos sobre Garrett que acumulei para o meu livro? Quem nasceu primeiro, Pessoa ou Sá Carneiro? Troco as voltas ao século XIX e, por mero gosto pessoal, dou primazia a Eça sobre Camilo. Reparo que Natália Correia envelheceu 100 anos e está mal arrumada. No século XX, é o caos: tenho o maior cuidado com quem ponho ao lado da Agustina e, a medo, escolho o Vergílio Ferreira (eu sei que ela preferia estar ao pé de Tolstoi mas não é lógico). Mas como sei que a amarantina chega para ele, ponho também Agustina ao lado de Saramago (“Jóias de Família” ao lado de “Levantado do Chão”...). A seguir ao Saramago, vem o Lobo Antunes (mais dois que nunca se gramaram), depois a Sophia, o Al Berto, o Tolentino e o Mário Cláudio. Pergunto-me o que conversarão, no silêncio da noite, o niilista Al Berto com o crente Tolentino. Ou a pureza de Sophia, o que dirá ao genial mas gongórico Mário Cláudio?

Mais para atrás, assim como que escondidos, vêm os Sousas Tavares, os Rodrigues dos Santos (ofertas, devo esclarecer). Já quase não há espaço para escritores que admiro imenso (Luíz Pacheco, Gonçalo M. Tavares), o que me obriga a tirar tudo outra vez e remeter alguns livros para um caixote e fechá-los na arrecadação. E os poetas? Será que o Cesariny se dava com o Eugénio? Onde ponho a Fiama?

Nos estrangeiros o drama continua: quem vem primeiro, Stendhal ou Racine? Beauvoir casa bem com Malraux mas onde é que estão os Sartre’s? E Yourcenar, afinal, é de que país? Ponho-a na Bélgica, em homenagem à minha “vida belga” mas encostada à Duras. Quando chego à literatura de expressão inglesa, dou cabo dos movimentos de auto-determinação e arrumo tudo na mesma prateleira, desde o Bangladesh à Índia, da África do Sul à Austrália. Ponho o Joyce ao lado do Wilde (o primeiro de máscara, o segundo a celebrar o bloomsday). Miller é inglês ou americano? Ressuscito a Mitteleuropa e junto Goethe, Herman Broch, Robert Walzer e Sandor Marai.

Chego às ciências humanas e separo bem a filosofia/ história das restantes, já vizinhas do ocultismo. Faço questão de reorganizar toda uma prateleira para ter a certeza que Hannah Arendt e Martin Heidegger ficam juntos. Dou-me conta que tenho uma pilha de livros de Habermas repetidos (que raio de fixação numa biblioteca que não é um “espaço público”). Autonomizo a história de África/ Angola, em nova homenagem ao passado. Separo os apoiantes do MPLA dos dissidentes do regime para aquilo não dar confusão. Não sei onde pára a poesia da Alda do Espírito Santo. Junto a biografia do Amílcar Cabral à do Savimbi.

Termino com as lusofonias: e depois de horas de esforço e muitas dores nas costas, acabo por arrumar Clarice Lispector ao lado de Pepetela. Desculpa Clarice, mas não havia mais espaço.

1 comentário:

  1. "Faço questão de reorganizar toda uma prateleira para ter a certeza que Hannah Arendt e Martin Heidegger ficam juntos"... És um lírico. Um essencial, eu diria mesmo.
    JMR.

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