O PAVIMENTO DE NEVE
Quando visitaram a casa, no velho quarteirão da cidade, encontraram Shirikawa já morto de fome, no seu quarto de dormir. O apartamento tinha ainda dois outros aposentos. Ambos sem mobília. No primeiro, estavam apenas três cadeiras negras, de tipo europeu, encostadas à janela, como se alguém estivesse disposto a contar, pela janela, as mil folhas do plátano. Depois percebeu-se que as cadeiras eram dos três magríssimos gatos, companheiros do velho. Na terceira sala, o pavimento apresentava-se coberto por um manto de arroz muito branco. Shirikawa nascera em Chichibu, uma aldeia do Norte do Japão. Desde jovem, durante a procissão para a queda das primeiras neves, tocava um pequeno ko-daiko*.
Porque será que Shirikawa, possuindo todo aquele arroz, se deixara morrer de fome?
Quando o levaram com a liteira, alguém experimentou deitar-se na cama, até assumir a posição exacta do morto. Com a cabeça pousada sobre o travesseiro, para além do corredor, viu o quarto com o pavimento de arroz. Saboreou a doce contemplação da neve pousada, e até a cor de cinza da parede do fundo parecia inverter-se para formar um céu frio e invernal.
Depois de longa investigação no quarteirão, descobriu-se que Shirikawa, desde há alguns anos, sofria com saudades da neve. Aquele era um lugar onde nunca nevava.
* Pequeno instrumento de percussão muito usado no Japão
Tonino Guerra, Histórias para uma noite de calmaria
(lido há muitos anos, quando nem sonhava com o Japão, e recordado esta semana via Bibliotecário de Babel)
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