Entrei no metro na estação de Omote-sando e peguei no livro sobre o bushido, o código de ética dos samurais. Três estações me separam do destino final mas o livro é tão bem escrito que não resisti a esse exercício semi-masoquista que é ler no metro, entalado entre a mole humana e tentando vencer o desafio de repor a ordem nas palavras sovadas pelos apertos da multidão. Na estação seguinte, Ayoama-itchome, cruzam-se várias linhas e saiu muita gente mas entraram quase outros tantos entre as quais duas raparigas nos seus mid-twenties, uma ocidental e outra japonesa. A autóctone tinha o cabelo pintado de laranja, sacola à tiracolo, maquilhagem carregadíssima que lhe fazia os olhos cavados e distantes do sono. A europeia (francesa, percebi depois) tinha piercings em cada poro e lambia os lábios com uma pseudo-sensualidade aprendida em revistas femininas vendidas em quiosques suburbanos. Falavam inglês (mal) e a francesa queixava-se da família do namorado enquanto bebericava um copo de café, do qual tacticamente me afastei. A japonesa ouvia e dizia que sim com a cabeça mas mantendo uma distância ontológica, perante uma indignação estudada e crescente da outra, que agitava as mãos, afagava o peito e inclinava a cabeça para trás, como que a sinalizar que não aguentava mais os despautérios do proto-futura sogra. Ao pescoço trazia um fio muito fino onde balançava uma medalha de santo enegrecida. A japonesa continuava a ouvir, atenta e fiel, mas ia desviando o olhar para o telemóvel. (Estávamos já em Nagatacho, saem muitos funcionários públicos, é a estação dos “ministérios”, as meninas acomodam-se ao canto mas não se desviam nem a francesa interrompe o crescente de indignação). O metro arranca para a estação seguinte, Hanzomon, onde tenho de sair, mas a japonesa faz o favor de ditar o juízo final antes, explicando à francesa o mais improvável dos pontos de vista na óptica de Paris (e de Lisboa, concedo). A francesa ficou em silêncio, eu fiquei em silêncio, tive mesmo a sensação que toda a carruagem ficou em silêncio e que o mundo todo ficou em silêncio. Lembrei-me da senhora Merkel a dizer que o multiculturalismo falhou. Lembrei-me de Álvaro de Campos e de “sentir tudo de todas as maneiras”. E pensei que é uma pena que Angela Merkel nunca tenha lido Pessoa.
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