20/12/2010


Macau II - O mundo que os portugueses criaram
(ou talvez César não tivesse razão)



Se o jogo torna a paisagem de Macau decadente e triste - mesmo no meio dos néons dos casinos - a verdade é que aquilo é um milagre. Se me envergonho, logo me espanto, para usar usar a dicotomia de Sá de Miranda. No mais simples e comezinho: não pode o visitante deixar de se perder de razões quando, ao entrar numa loja vê à venda a revista CARAS... (e a Agustina, e o Lobo Antunes, e Cardoso Pires, e por aí fora). No meio da Ásia, para lá de terras distantes e marés adversas, Macau é ainda, contra o expectável, uma cidade de matriz portuguesa: nas igrejas barrocas, na calçada, na Santa Casa da Misericórdia, na arquitectura civil e militar, nos pastéis de nata, nos restaurantes, no recorte das praças, na casario que lhes é sobranceiro, nas placas das ruas, na "Pharmácia Popular" que "avia as receitas", nos azulejos de Nossa Senhora de Fátima. É uma aldeola ao pé de HK? Será. Mas o que é Lisboa ao lado de Londres?





Macau foi onde o sol do império se pôs. Com o Brasil ao largo e com a África lusófona a caminhar para a idade adulta, cedo ou tarde seria chegado o momento de devolver aquele pedaço de terra a quem ela por direito pertence (e só não foi mais cedo, importa lembrar a história recente, porque os chineses não a quiseram logo a seguir ao 25 de Abril). Foi ali que se fechou um ciclo, com a bandeira agarrada ao peito de Rocha Vieira, os portugueses a lacrimejar, a porta do cerco a ser trancada e a chave a ser posta num envelope endereçado a Pequim. Fez-se o que tinha de ser feito.





O que Macau tem ainda de tão especial é que a portugalidade lhe está impregnada. Se falhámos redondamente (e vergonhosamente, e incompreensivelmente, e estupidamente) naquilo que deveria ter sido um objectivo pivotal - deixar a língua à séria - noutros, como no direito, estivémos à altura (é só entrar numa livraria para ver as lições de direito processual de Lebre de Freitas ou de direito civil de Menezes Cordeiro). E nos sinos que do alto dos campanários dobram, ouve-se dizer uma prece, sussurada ora em português manhoso, ora em língua local. Aqui, como em tantas outras ocasiões da história, preste-se a homenagem à igreja que soube tratar dos haveres do Paço bem mais diligentemente que os senhores civis souberam lavrar as matérias seculares.



Não adianta lamentar o que não tem emenda: os velhotes a falar português enchem um autocarro e, numa questão de tempo, o talhão do cemitério local, levando com eles últimos ecos de Camões ou de Camilo Pessanha (Pessanha, o único grande poeta que Macau 'produziu' e acolheu - e que o ópio ceifou - merecia melhor destaque e melhor sorte que aquela ruela que a toponímia lhe reservou). Volvidos os 50 anos da transição, pode Pequim acabar com as petições iniciais, réplicas e tréplicas que se ensinam na faculdade de direito na Taipa mas não acabará, salvo se for acometida por algum improvável delírio talibânico, com a majestade das ruínas de S. Paulo cuja imponente fachada se encarregará de recordar ao mundo que ali lançou amarras gente de azimutes longínquos que trazia consigo a fama de não se governar nem se deixar governar. Afinal, se calhar, nem foi tanto assim.





Em tempo: amigo estimadíssimo e com costela macaense protestou-me ontem à noite que o texto anterior (sobre os casinos) dava uma má ideia de Macau, ainda por cima sem sentido porque eu já lhe tinha dito que tinha gostado muito do "território". Espero que a prosa de hoje redima tais entendimentos. Para que fique claro: Macau surpreendeu-me pela positiva para lá do que eu estava à espera. Gostei muitíssimo e, como muito acertadamente disse esse mesmo amigo, é um sítio onde apetece ficar para escrever um livro. Nem mais.

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