05/04/2011


La musique do orgasmo


Quando Reiko entra no consultório do dr. Shiomi, em Ginza, diz-lhe: “Docteur, comment expliquer cela? Je n’entends pas la musique.” O psiquiatra não esconde ao leitor a sua estupefacção. “Que voulait–elle dire par là?”. Desfiando as horas, o dr. Shiomi estuda a paciente, decanta o seu passado como quem trata de um vinho raro, cuida das palavras e dos silêncios, dos ditos e dos não ditos. O mais difícil é separar a verdade da mentira (onde está a fronteira entre uma e outra? E onde está a fronteira, não da verdade em si, mas do próprio conceito de verdade?), e perceber que, numa mulher esgarçada como Reiko, a linha é ténue e os castelos fantasistas são caminhos reveladores de uma luz que, porventura, está ausente do tempo que forra os dias. As mentiras (mentiras?) de Reiko encadeiam-se com uma perfeição assustadora e chegam a baralhar o próprio leitor.


Não leva muito tempo até que Shiomo perceba o que Reiko quer dizer – ela é, afinal, incapaz do prazer sexual, incapaz de ter um orgasmo ou até simplesmente de verbalizar a palavra. O médico trilha clinicamente a hipótese de uma histeria freudiana (são curiosas as referências fortes a uma tradição clínica puramente ocidental) mas que abandona por perceber que Reiko é um caso para além dos manuais de escola. Reiko corporiza “le mépris (…) pour l’être humain”. É nesse divórcio dissimulado que Shiomo vai encontrar a chave de compreensão dos fantasmas que afligem Reiko.


La Musique é um romance pouco conhecido de Yukio Mishima (não está traduzido em português) e temperado por um humor cínico (os cínicos diriam: sórdido) que o singulariza no conjunto da sua obra. Não respira como um livro: flana como uma sonata que vive do virtuosismo melódico do compositor. Só Mishima dava conta de tal andamento.


[foi a MJB que me falou deste livro, que citou na defesa da tese de doutoramento a propósito de “disfuncionalidades comunicativas” e que o CD comprou na Filigranes de Bruxelas, “entre a biografia do Rei Balduíno e um pastel de Tentúgal” (sic) e me enviou, a meu pedido. Obrigado aos dois].


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