José Mário Silva revelou (aqui) há dias, no Festival Literário da Madeira, aquele que é o segredo menos bem guardado do meio literário português: o mito das letras contemporâneas que é Aurelino Sousa Gomes.
Sousa Gomes nasceu no Funchal nos anos 20 do século passado e tem – diz-se – das obras mais prolíficas dos últimos 100 anos em Portugal. Nunca publicou uma linha, pese embora insistências de todos os azimutes. Mantém correspondência com o espanhol Enrique Vila-Matas depois de o ter ameaçado espancar numa ruela de Barcelona. Não se sabe se conserva uma arca pessoana, se queima em noites frias os cadernos que nunca escreveu, se grava textos num gravador antigo ou se, pura e simplesmente, escreve em toalhas de papel de restaurantes de peixe sobranceiros ao mar de Porto Moniz.
Mário Silva conheceu pessoalmente Aurelino Sousa Gomes, que era amigo do seu avô paterno. Não tive tal sorte.
Ouvi pela primeira vez falar de Aurelino no Verão de 1999: cansado da minha tese académica e da prosápia jus-positivista, fugi para a Madeira por quatro dias. Na véspera de regressar a Lisboa, esperei à porta da Sé do Funchal por José Tolentino de Mendonça. Chegou com minutos de atraso para me resgatar ao spleen ilhéu, estando eu ali, encostado à caliça clerical a ler a “Baía dos Tigres”, de Pedro Rosa Mendes. Tolentino levou-me a jantar ao Machico e, à saída do Funchal, passando nós por um casario rasteiro, disse-me: “Naquela casa nasceu o Aurelino Sousa Gomes, conheces?”. Não conhecia, nem o nome me dizia um átimo. O poeta-padre explicou-me então quem era Aurelino, o mito que se criara em torno dele e a diferença imensa face à inevitável comparação com Herberto Helder. Ao contrário de HH, Aurelino recusava obstinada e continuamente publicar, não se lhe conhece uma única fotografia, ninguém do meio literário lusitano alguma vez chegou à fala com ele. E, no entanto, todos já ouviram falar dele, mas em sussuro velado e desmentido.
Curiosamente, acabei por vir ouvir falar de Aurelino Sousa Gomes num final da tarde em Tóquio. Numa recepção social, dessas que se prolongam para lá do que seria a vontade dos anfitriões e que recomendaria o pundonor social, dei por mim à conversa com um professor japonês, lusitanista e académico numa universidade da capital. Embalado por um Porto seco, perguntou-me por Aurelino. Não escondi a surpresa: como era possível que em azimute tão remoto um académico, mesmo estudioso da portugalidade, conhecesse um escritor fantasma? Explicou-me que se tinha doutorado em Coimbra, com uma tese sobre a escrita insular portuguesa. Partira de Antero para chegar a Natália, mas passando também pela Madeira, pelos versos de José Agostinho Baptista e, claro, por Tolentino e Herberto. Concluira que as marcas da insularidade têm traços comuns entre os nossos dois arquipélagos (o mar, o isolamento, a partida) mas dissemelhanças não menos fortes (traços psicológicos mais introspectivos nos Açores; uma maior reconciliação com a ideia de ausência no caso da Madeira). Alongou-se em detalhes para me dizer que tinha passado uma temporada de investigação no Funchal e que tinha recorrido a todos os meios para chegar à fala com Aurelino. Não conseguiu e trouxe consigo essa frustração: diz-me que sente que a sua tese não está acabada por lhe faltar esta palavra que nunca conseguiu arrancar ao escritor que fez da fuga um estilo e uma opção de vida.
Foi sobre este homem mistério que José Mário Silva falou no FLM há dias, trazendo luz sobre um nome que todos admiram mas que ninguém conhece. Falou-se dele por uns dias mas tudo voltará ao mesmo silêncio de sempre. Por agora, José Mário Silva conseguiu algo inédito – recebeu um telegrama de Aurelino, que é, salvo erro, o único mas mesmo o único texto aureliano que alguma vez viu a luz do dia. Pode ser lido aqui.
(desenho de Pedro Vieira)
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