GATOS
Descobri ontem à noite, no túnel da negritude por onde nos levam as noites de insónia, que Júlio Cortazar tinha um gato chamado Theodor Adorno (descobri também que Cortazar nasceu em Bruxelas porque o pai era diplomata argentino então aqui colocado). Cortazar explica, não sem detalhe, as razões que o levaram a baptizar o bichano com o nome do filósofo alemão. Foi uma análise de personalidade, longamente observada e maritalmente consentida. Também Dorris Lesing tem uma deliciosa colectânea de contos sobre gatos (why cats matter, diz-se na contra-capa). Entre nós, Fialho de Almeida escreveu um livro assim chamado, Prado Coelho dedica-lhes páginas do diário, Gabriela Llansol vivia rodeada de gatos, Hélia Correia idem. Os gatos têm um charme, autonomia, sobranceria e delicadeza que não escapa aos escritores. Não fazem barulho e passeiam em cima dos livros com tacto poético. Alongam-se como uma frase sem vírgulas, abanam-se como um diálogo mal escrito, desaparecem como uma personagem incómoda, roçam em nós como uma narrativa insinuante, olham-nos como um narrador omnisciente. Não há bicho mais literário. Sobretudo quando desaparecem para sempre sem deixar rasto. Já me tem acontecido o mesmo com alguns livros.
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