Eu estava a ler e a tomar café. A mulher entrou: era muito alta, vestia um sobretudo preto e trazia calçadas umas botas de neve. Estava abundantemente maquilhada, a disfarçar sete décadas de dor. Sentou-se numa mesa ao lado da minha, tirou as botas e arrumou-as alinhadas ao lado da cadeira. Pousou um saco de plástico branco, a abarrrotar de memórias e, tirando o sobretudo, ficou à vista um top escarlate que escondia mal os peitos. Revolveu o saco e tirou um estojo de maquilhagem, uma caixa de óculos, um porta-moedas azul e uns papéis velhos. Pediu um gelado de morango e três copos de água. Bebeu a água de um trago só e comeu o gelado muito devagar. Mexia abundantemente no saco e ia tirando peças de roupa, trapos ciganos de cores garridas, um vestido comprido, uma cabeleira loura, um cachecol veranil e outros adereços que poderiam ser circenses, ou de um cabaret de arrabaldes urbanos ou de um teatro de província. Parecia balbuciar qualquer coisa de si para si, uma oração incontida, um perjúrio assumido, mas sempre num tom inaudível e constante. Não levantava os olhos mas, de vez em quando, olhava alternadamente para mim (obrigando-me a disfarçar o meu fascínio) e para duas outras mulheres que, mesa adiante, se queixariam ora dos patrões ora dos maridos. Quando acabou o gelado, pegou num dos copos e verteu os restos de água para dentro da taça. Depois pediu mais guardanapos e limpou furiosamente e mesa. Estávamos nisto quando entra um homem mais novo do que ela, de cabeleira farta, casaco roçado, rosto escanhoado, trazendo na mão um molho de cenouras, como noiva a caminho do altar segurando um ramo de íris. Aproximou-se da mulher, debruçou-se ao ouvido e sussurou qualquer coisa. Depois deu-lhe um beijo, pousou as cenouras em cima da mesa e partiu. A mulher arrumou o saco grande de plástico branco e, impávida, pagou a conta com elegância e saiu também.
Uma leitura apressada poderia levar a pensar que esta cena, imperturbavelmente verdadeira, é um sinal do surrealismo belga. Não é. Esta cena, imperturbavelmente verdadeira, foi o rosto visível do Dia Mundial da Poesia.
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