31/03/2010


BACALHAU COM TODOS E ISCAS COM ELAS
Confesso que me parecem as duas designações mais absurdas de toda gastronomia portuguesa (quiça mundial): bacalhau "com todos"? iscas "com elas"? Mas quem são estes apêndices que se metem aqui com o bacalhau e com as iscas? No primeiro caso, parece que são as batatas, as cenouras, as couves, os ovos e os grelos. São cinco: logo, não são todos porque ficam de fora imensas outras possibilidades - arroz, esparguete, couves de bruxelas, couve-flor, presunto pata-negra, ervilhas e feijão verde. No segundo caso, são as batatas. Mas por que razão não se diz "iscas com batatas" em vez de "com elas"? A verdade é que a designação remete para um plano ligeiramente aporcalhado - "elas" são as que não têm nome, as de vida fácil, as que vão as iscas hoje e com os bifes amanhã. Depois, "elas" vão com as "iscas" que, na terminologia popular, também vivem em fraternal vizinhança com o deboche. Imaginemos o seguinte: alguém fala de "bacalhau com elas"? Não. Porque o bacalhau é um senhor, um cavalheiro requintado, magnânime, não anda por aí a vadiar com "elas" (pelo menos em público). O que não seria, por maioria de razão, se as iscas fossem "com todos"...

29/03/2010


VALTER HUGO MÃE

Havia quatro razões para não ler este livro: (1) uma capa horrorosa; (2) um título absurdo; (3) uns artigos de jornal que referiam hugo mãe como "o escritor pop do momento"; (4) um livro anterior ("o apocalipse dos trabalhadores") de que não gostei. Ora bem: contra estas razões, decidi comprar e ler o novo livro de valter hugo mãe, "a máquina de fazer espanhóis". Em boa hora: a escrita é límpida, madura e arrojada. A cadência narrativa tem uma musicalidade própria, guiando-nos pela dor do senhor silva que, aos 84 anos, se vê viúvo, perdendo mais do que laura, perdendo o sopro de lucidez que o mantinha de pé. Há na escrita de hugo mãe um experimentalismo que nunca chega a ser pretencioso, tacteando terrenos virgens mas com uma segurança notável. O arrojo de ter um escritor de menos de 40 anos a dar corpo a um personagem que leva quase 9 décadas de vida é talvez a fragilidade mais evidente do romance: falta corpo e densidade a algumas das viagens de antónio silva. Mas, apesar de tudo, julgo que é um aspecto menor na escrita de alguém que aceita correr o risco de escrever para reinventar a linguagem.

28/03/2010


JL

Gosto do novo JL. Gosto do grafismo. Gosto da Hélia Correia na capa.
HERCULANO


A mátria andou excitada este fim de semana com os 200 anos do nascimento de Alexandre Herculano (vá lá, a excitação possível em matérias afins). Eu não. Eu não gosto de Herculano. Nunca gostei de Herculano. Embirro com Herculano. Tenho calafrios quando me lembro do débito escolar que me obrigou a conviver com Eurico. Irrita-me o tom barroquinho a preto e branco. O vozeirão a defender a magistratura moral. A deriva conservadora anti-setembrista. O providencialismo dum homem só. Os discursos parlamentares anti-desenvolvimentistas. O amuo ribatejano de quem achava que o país não o merecia. Ao menos à época Portugal era uma monarquia. Caso contrário, tenho para mim que Herculano teria concorrido à mais alta magistratura da Nação.

25/03/2010

"This is a big fucking deal", says Biden. Republicans are shocked. More shocked than with the fact that 32 million Americans didn't have health care untill now...

24/03/2010

GATOS

Descobri ontem à noite, no túnel da negritude por onde nos levam as noites de insónia, que Júlio Cortazar tinha um gato chamado Theodor Adorno (descobri também que Cortazar nasceu em Bruxelas porque o pai era diplomata argentino então aqui colocado). Cortazar explica, não sem detalhe, as razões que o levaram a baptizar o bichano com o nome do filósofo alemão. Foi uma análise de personalidade, longamente observada e maritalmente consentida. Também Dorris Lesing tem uma deliciosa colectânea de contos sobre gatos (why cats matter, diz-se na contra-capa). Entre nós, Fialho de Almeida escreveu um livro assim chamado, Prado Coelho dedica-lhes páginas do diário, Gabriela Llansol vivia rodeada de gatos, Hélia Correia idem. Os gatos têm um charme, autonomia, sobranceria e delicadeza que não escapa aos escritores. Não fazem barulho e passeiam em cima dos livros com tacto poético. Alongam-se como uma frase sem vírgulas, abanam-se como um diálogo mal escrito, desaparecem como uma personagem incómoda, roçam em nós como uma narrativa insinuante, olham-nos como um narrador omnisciente. Não há bicho mais literário. Sobretudo quando desaparecem para sempre sem deixar rasto. Já me tem acontecido o mesmo com alguns livros.

22/03/2010

DIA MUNDIAL DA POESIA


Eu estava a ler e a tomar café. A mulher entrou: era muito alta, vestia um sobretudo preto e trazia calçadas umas botas de neve. Estava abundantemente maquilhada, a disfarçar sete décadas de dor. Sentou-se numa mesa ao lado da minha, tirou as botas e arrumou-as alinhadas ao lado da cadeira. Pousou um saco de plástico branco, a abarrrotar de memórias e, tirando o sobretudo, ficou à vista um top escarlate que escondia mal os peitos. Revolveu o saco e tirou um estojo de maquilhagem, uma caixa de óculos, um porta-moedas azul e uns papéis velhos. Pediu um gelado de morango e três copos de água. Bebeu a água de um trago só e comeu o gelado muito devagar. Mexia abundantemente no saco e ia tirando peças de roupa, trapos ciganos de cores garridas, um vestido comprido, uma cabeleira loura, um cachecol veranil e outros adereços que poderiam ser circenses, ou de um cabaret de arrabaldes urbanos ou de um teatro de província. Parecia balbuciar qualquer coisa de si para si, uma oração incontida, um perjúrio assumido, mas sempre num tom inaudível e constante. Não levantava os olhos mas, de vez em quando, olhava alternadamente para mim (obrigando-me a disfarçar o meu fascínio) e para duas outras mulheres que, mesa adiante, se queixariam ora dos patrões ora dos maridos. Quando acabou o gelado, pegou num dos copos e verteu os restos de água para dentro da taça. Depois pediu mais guardanapos e limpou furiosamente e mesa. Estávamos nisto quando entra um homem mais novo do que ela, de cabeleira farta, casaco roçado, rosto escanhoado, trazendo na mão um molho de cenouras, como noiva a caminho do altar segurando um ramo de íris. Aproximou-se da mulher, debruçou-se ao ouvido e sussurou qualquer coisa. Depois deu-lhe um beijo, pousou as cenouras em cima da mesa e partiu. A mulher arrumou o saco grande de plástico branco e, impávida, pagou a conta com elegância e saiu também.

Uma leitura apressada poderia levar a pensar que esta cena, imperturbavelmente verdadeira, é um sinal do surrealismo belga. Não é. Esta cena, imperturbavelmente verdadeira, foi o rosto visível do Dia Mundial da Poesia.


20/03/2010

COMPUTADORES

Sou funcionário público há mais de dez anos e trabalho diariamente em frente ao computador, dezenas de horas por semana, centenas de horas por mês. O computador não é meu, nunca o considerei como tal, nunca tive um computador novo, sempre herdei computadores dos meus antecessores e deixei computadores aos meus sucessores. Mas seria ridículo e hipócrita vir dizer que não o uso (também) para fins pessoais, que não uso e consulto as minhas contas mail pessoais ou extractos bancários (por exemplo) e que não tenho uma pasta separada com documentos pessoais. Nisto, como em tudo, recomenda-se bom senso e parcimónia. E recuso, em absoluto, a ideia de que um servidor do Estado não tem direito à privacidade.

19/03/2010

PORTUGAL
A ESCOLA

No espaço de poucas semanas recebi dois grupos de alunos portugueses: um duma escola pública do interior do país e outro dum colégio privado duma grande cidade. Em ambas as escolas se via o mesmo: firmeza, determinação e generosidade dos professores; vontade, curiosidade e espírito crítico dos alunos. Mas uma conversa aprofundada com uns e outros (mesma faixa etária, pré-universitários) mostrou uma coisa: a escola não está a corrigir as desigualdades sociais, está até porventura a acentuá-las. Ora, esse é porventura um dos maiores desígnios da escolarização: corrigir assimetrias sociais para dar a todos as mesmas oportunidades. Sem isto a sociedade nunca pode ser justa.

Nós caminhamos radiosos sobre a nossa miséria (Holderlin).
O PRÍNCIPIO DE TI - A ler absolutamente (mesmo), a crónica do Miguel Esteves Cardoso, hoje no "Público" sobre a queda do cabelo da Mª João (sua mulher) que tem cancro. O que poderia ser uma devassa, torna-se um grito que rompe com o sufoco.
Message to Israel: Call us when you are serious (Thomas L. Friedman)
http://www.nytimes.com/2010/03/14/opinion/14friedman.html
Para uns, a raiz é a parte invisível que permite à árvore crescer. Para mim, a raiz é a parte invisível que a impede de voar como os pássaros. Na verdade, uma árvore é um pássaro falhado.
Afonso Cruz

Centro de Berna, ontem ("roubado" ao blog Abrupto, de Pacheco Pereira).

13/03/2010


I can easily think of some friends who would love to wear those!

11/03/2010


Um envelope que aterra em cima da secretária. Um remetente inesperado. Um livro. Um cartão. Uma mensagem. Há pessoas que ainda nos surpreendem. Há instantes de esperança.

Ser invisível aos olhos que passam.

10/03/2010


IRAQUE - Taxa de participação nas eleições: 62.4% (Portugal: 59.7%)

ALDA DO ESPIRITO SANTO
Comprei, por mero acaso, um livro de Alda do Espírito Santo em S. Tomé em 2005. Descobri só depois que tinha sido Ministra da Cultura e figura de proa da luta pela independência. Foi talvez o poeta mais significativo da literatura santomense. Já em Bruxelas, em 2009, evocámos a sua obra numa sessão de poesia e música no quadro da CPLP, onde foram lidos poemas seus, junto com os de outros poetas lusófonos. Morreu ontem em Luanda.
TOILETS - On my reading/ googling about Japan, I came across this video about the local toilets? Should I cry or should I laugh?

09/03/2010



SAMUEL BECKETT


Essayer encore. Rater encore. Rater mieux.





06/03/2010



PASOLINI

Pasolini faria hoje 88 anos. Destemperado, inconsútil, radical, foi amigo de Tonino Guerra e deu-nos alguns dos textos mais candentes da literatura italiana do século XX. Tinha um olhar penetrante. "Teorema" é um dos meus livros de sempre.


Pedem tanto a quem ama: pedem o amor. Ainda pedem a solidão e a loucura. Herberto Hélder

02/03/2010

O pó futuro, em que nos havemos de converter, é visível à vista, mas o pó presente, o pó que somos, como poderemos entender essa verdade? - Pe. António Vieira

TUDO SE DESFAZ