31/03/2010
29/03/2010
Havia quatro razões para não ler este livro: (1) uma capa horrorosa; (2) um título absurdo; (3) uns artigos de jornal que referiam hugo mãe como "o escritor pop do momento"; (4) um livro anterior ("o apocalipse dos trabalhadores") de que não gostei. Ora bem: contra estas razões, decidi comprar e ler o novo livro de valter hugo mãe, "a máquina de fazer espanhóis". Em boa hora: a escrita é límpida, madura e arrojada. A cadência narrativa tem uma musicalidade própria, guiando-nos pela dor do senhor silva que, aos 84 anos, se vê viúvo, perdendo mais do que laura, perdendo o sopro de lucidez que o mantinha de pé. Há na escrita de hugo mãe um experimentalismo que nunca chega a ser pretencioso, tacteando terrenos virgens mas com uma segurança notável. O arrojo de ter um escritor de menos de 40 anos a dar corpo a um personagem que leva quase 9 décadas de vida é talvez a fragilidade mais evidente do romance: falta corpo e densidade a algumas das viagens de antónio silva. Mas, apesar de tudo, julgo que é um aspecto menor na escrita de alguém que aceita correr o risco de escrever para reinventar a linguagem.
28/03/2010
A mátria andou excitada este fim de semana com os 200 anos do nascimento de Alexandre Herculano (vá lá, a excitação possível em matérias afins). Eu não. Eu não gosto de Herculano. Nunca gostei de Herculano. Embirro com Herculano. Tenho calafrios quando me lembro do débito escolar que me obrigou a conviver com Eurico. Irrita-me o tom barroquinho a preto e branco. O vozeirão a defender a magistratura moral. A deriva conservadora anti-setembrista. O providencialismo dum homem só. Os discursos parlamentares anti-desenvolvimentistas. O amuo ribatejano de quem achava que o país não o merecia. Ao menos à época Portugal era uma monarquia. Caso contrário, tenho para mim que Herculano teria concorrido à mais alta magistratura da Nação.
25/03/2010
24/03/2010
Descobri ontem à noite, no túnel da negritude por onde nos levam as noites de insónia, que Júlio Cortazar tinha um gato chamado Theodor Adorno (descobri também que Cortazar nasceu em Bruxelas porque o pai era diplomata argentino então aqui colocado). Cortazar explica, não sem detalhe, as razões que o levaram a baptizar o bichano com o nome do filósofo alemão. Foi uma análise de personalidade, longamente observada e maritalmente consentida. Também Dorris Lesing tem uma deliciosa colectânea de contos sobre gatos (why cats matter, diz-se na contra-capa). Entre nós, Fialho de Almeida escreveu um livro assim chamado, Prado Coelho dedica-lhes páginas do diário, Gabriela Llansol vivia rodeada de gatos, Hélia Correia idem. Os gatos têm um charme, autonomia, sobranceria e delicadeza que não escapa aos escritores. Não fazem barulho e passeiam em cima dos livros com tacto poético. Alongam-se como uma frase sem vírgulas, abanam-se como um diálogo mal escrito, desaparecem como uma personagem incómoda, roçam em nós como uma narrativa insinuante, olham-nos como um narrador omnisciente. Não há bicho mais literário. Sobretudo quando desaparecem para sempre sem deixar rasto. Já me tem acontecido o mesmo com alguns livros.
22/03/2010
Eu estava a ler e a tomar café. A mulher entrou: era muito alta, vestia um sobretudo preto e trazia calçadas umas botas de neve. Estava abundantemente maquilhada, a disfarçar sete décadas de dor. Sentou-se numa mesa ao lado da minha, tirou as botas e arrumou-as alinhadas ao lado da cadeira. Pousou um saco de plástico branco, a abarrrotar de memórias e, tirando o sobretudo, ficou à vista um top escarlate que escondia mal os peitos. Revolveu o saco e tirou um estojo de maquilhagem, uma caixa de óculos, um porta-moedas azul e uns papéis velhos. Pediu um gelado de morango e três copos de água. Bebeu a água de um trago só e comeu o gelado muito devagar. Mexia abundantemente no saco e ia tirando peças de roupa, trapos ciganos de cores garridas, um vestido comprido, uma cabeleira loura, um cachecol veranil e outros adereços que poderiam ser circenses, ou de um cabaret de arrabaldes urbanos ou de um teatro de província. Parecia balbuciar qualquer coisa de si para si, uma oração incontida, um perjúrio assumido, mas sempre num tom inaudível e constante. Não levantava os olhos mas, de vez em quando, olhava alternadamente para mim (obrigando-me a disfarçar o meu fascínio) e para duas outras mulheres que, mesa adiante, se queixariam ora dos patrões ora dos maridos. Quando acabou o gelado, pegou num dos copos e verteu os restos de água para dentro da taça. Depois pediu mais guardanapos e limpou furiosamente e mesa. Estávamos nisto quando entra um homem mais novo do que ela, de cabeleira farta, casaco roçado, rosto escanhoado, trazendo na mão um molho de cenouras, como noiva a caminho do altar segurando um ramo de íris. Aproximou-se da mulher, debruçou-se ao ouvido e sussurou qualquer coisa. Depois deu-lhe um beijo, pousou as cenouras em cima da mesa e partiu. A mulher arrumou o saco grande de plástico branco e, impávida, pagou a conta com elegância e saiu também.
Uma leitura apressada poderia levar a pensar que esta cena, imperturbavelmente verdadeira, é um sinal do surrealismo belga. Não é. Esta cena, imperturbavelmente verdadeira, foi o rosto visível do Dia Mundial da Poesia.
20/03/2010
Sou funcionário público há mais de dez anos e trabalho diariamente em frente ao computador, dezenas de horas por semana, centenas de horas por mês. O computador não é meu, nunca o considerei como tal, nunca tive um computador novo, sempre herdei computadores dos meus antecessores e deixei computadores aos meus sucessores. Mas seria ridículo e hipócrita vir dizer que não o uso (também) para fins pessoais, que não uso e consulto as minhas contas mail pessoais ou extractos bancários (por exemplo) e que não tenho uma pasta separada com documentos pessoais. Nisto, como em tudo, recomenda-se bom senso e parcimónia. E recuso, em absoluto, a ideia de que um servidor do Estado não tem direito à privacidade.
19/03/2010
No espaço de poucas semanas recebi dois grupos de alunos portugueses: um duma escola pública do interior do país e outro dum colégio privado duma grande cidade. Em ambas as escolas se via o mesmo: firmeza, determinação e generosidade dos professores; vontade, curiosidade e espírito crítico dos alunos. Mas uma conversa aprofundada com uns e outros (mesma faixa etária, pré-universitários) mostrou uma coisa: a escola não está a corrigir as desigualdades sociais, está até porventura a acentuá-las. Ora, esse é porventura um dos maiores desígnios da escolarização: corrigir assimetrias sociais para dar a todos as mesmas oportunidades. Sem isto a sociedade nunca pode ser justa.