28/06/2010


Wadi-Rum, a ausência de nós




Em “Os Sete Pilares da Sabedoria”, T. E. Lawrence descreve Wadi Rum como um local onde “as paisagens, como os sonhos infantis, são vastas e silenciosas”. Sessenta quilómetros a norte de Aqaba, subindo pela estrada do deserto, ali está, escondido, discreto e pujante, o vasto deserto de Wadi Rum. Pátria de beduínos, esconderijo de guerrilheiros, cenário de camelos e tendas rústicas onde o viajante pára para beber um chá, Wadi Rum nasceu para o turismo em 1984 quando os ingleses pediram autorização ao governo jordano para desenvolver as potencialidades que o lugar tem. O pastorio cabril conheceu o seu fim e os camelos deixaram de ser meio de transporte para passarem a ser cenário de fotografias. Nem tudo pode ser perfeito mas metade dos 5500 habitantes de Rum (com referências no Corão e presumindo-se significar “o ponto mais alto”) converteu-se ao turismo. Montaram restaurantes em tendas tradicionais, vendem bugiganga (e juram que é “antigo”), servem chá, ensaiam passos de dança e, claro, posam para as fotografias. Há um lado de turismo de século XXI mas, ao menos, os restaurantes foram poupados ao néon e o viajante come, sentado em almofadas no chão, espetadas de borrego e pão árabe com hummus.

O almoço às portas do deserto, num oásis despido de gente quando a Europa ainda vive um inverno rigoroso, é uma boa introdução ao que está para vir embora, naturalmente, se trate de uma parte a que Lawrence foi poupado, ocupado que estava a traçar planos de guerra com o príncipe Faisal. Expulsar os otomanos era a sua missão e, com a ajuda dos ingleses, tê-la-á cumprido com o mérito que a história lhe reconhece.

Percebe-se pelas conversas que, se Lawrence foi convertido em ícone turístico para alguns viajantes, também não é menos verdade que os jordanos de hoje não guardam dele as melhores memórias. Mas o aventureiro e espião inglês é, na verdade, secundário quando caminhamos nas areias de Wadi Rum. O que conta aqui é a planura do deserto. Em jipes descapotáveis partimos por entre as dunas, conduzidos por beduínos convertidos da arte camelar ao não menos difícil mister de conduzir 4X4 sem os atascar no areal. Dir-se-á que não há muito para dizer do deserto. É verdade. Porque o deserto, (salvo, porventura, para aqueles que escutam “uma voz que clama”, ao jeito de Paulo a caminho de Damasco) é sobretudo o “não–dito”, o eclipse do verbo, o peso do silêncio, o enigma do binómio presença/ ausência, a majestade da cor, a dança da areia ao sabor do vento, o pó em nós a antecipar o dia em que seremos nós o pó, o chá de menta numa tenda, uma fogueira ao final da tarde para tentar contrariar a descida vertiginosa de temperatura, o olhar dos homens (onde estão as mulheres?), a hospitalidade dos locais e a generosidade entre os aventureiros que ali passam umas horas roubadas à vida que julgam ter cá fora. O deserto é a frustração de Mahdi, o guia beduíno que me levou nesta incursão e que, enrolando-se no seu sofrível linguajar ocidental (e numa mortalha amarelecida que se colava aos lábios durante horas), dizia, à beira da frustração (linguística e existencial): “Não sei explicar, isto é único”.

O deserto, mesmo por umas horas e com regresso marcado, é a ausência de tempo. Não importa chegar – nem sequer “ousar partir”, como no poema do Torga – mas conseguir “estar” como se para nós, ali, o tempo não existisse. Não existiu para os nossos motoristas que, a certo momento, encostaram os jipes, fizeram a ablução e rezaram virados para Meca. Não há Lawrence, nem Torga, nem ninguém que tenha alguma vez conseguido explicar tal coisa. Num mundo frenético, ruidoso e quase sempre desinteressante, o nada do deserto resgata-nos. Talvez porque só ali se sente a ausência de nós.


(F., 19 Junho 2010)





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