Lançamento do Livro (III) - Texto na Orfeu
Aqui fica o texto que li na Livraria Orfeu no sábado passado.
Partidas
I.
O tempo de partidas é, por natureza, tempo de balanços. Vou poupar-vos a terem de me ouvir neste exercício: deixo-o para um plano pessoal ou para o Senhor Embaixador Bramão Ramos no que à avaliação e ao SIADAP diz respeito. Poupo-vos também a um rol de agradecimentos nomeados um a um. Esta semana sai um pequeno artigo meu no LusoJornal em que faço esse agradecimento público a todos com quem trabalhei. O “obrigado” que aí desenvolvo, deixo-o aqui de forma genérica, mas não menos sentida, a todos e a cada um com quem me cruzei ao longo dos últimos quatro anos.
Há, no entanto, um aspecto a que não me quero furtar: uma palavra sobre o trabalho consular na Bélgica, por causa das minhas funções de Encarregado da Secção Consular. Dentro da panóplia de tarefas que estão acometidas a um diplomata, esta é, sem dúvida, uma das mais estimulantes. Eu tenho, naturalmente, o prazer da escrita, de elaborar um texto de análise mais política e todos os colegas diplomatas aqui já experimentaram isto: escrever um telegrama para a Secretaria de Estado (para usar a velha terminologia da casa), chegar ao fim e ter aquela sensação de auto-comprazimento perante um resultado que sabemos que nos deixa satisfeitos. Envia-se o telegrama e pronto. Não há – nem tem de haver! – reacção. Alguém em Lisboa o lê, partilha, ou não, do gosto pela prosa, e arquiva o telegrama à espera de ser necessário fazer um apontamento.
Com o trabalho consular é diferente: em cada tarefa há um resultado que se vê. Cada gesto é pensado para uma pessoa; cada medida tem um destinatário com rosto; cada palavra produz efeitos em quem nos ouve. Desde que estou em posto, já devo ter escrito umas centenas de telegramas: mas nada se compara à satisfação de conseguir repatriar, em duas horas, um compatriota que nos bate à porta sem amparo; à lição de vida que é visitar portugueses presos, que encontramos no fundo de corredores escuros, por detrás de grades opressivas; ao entusiasmo com que nos recebem na associação x ou y; à alegria com que nos mostram as taças; à generosidade impressiva com que vi pessoas trabalhar em associações, escolas, grupos, paróquias, órgãos consultivos; à disponibilidade de pais, professores, artistas, empresários e outros que partilham das suas horas com a comunidade. Foram todos para mim uma lição permanente, deram-me mais do que podem, remotamente, imaginar.
II.
Numa das epístolas de S. Paulo, diz-se que
“para tudo há um momento, e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu”.
Fui há dias reler este texto e constatei que não se fala lá do tempo de chegar e do tempo de partir. E, no entanto, são tempos óbvios na vida de cada um. A mim, chegou-me agora o tempo de partir de Bruxelas, depois de quatro anos que passaram num ápice. Olho para trás e sinto essa coisa crudelíssima que é não sermos mestres mas servos de um tempo que não chega a ser o nosso. Quatro anos escoaram-se com a rapidez duma manhã apressada, com a leveza dum jantar de amigos. Agora que estou quase em vésperas de partir, apetece-me dizer como Maria Antonieta, já no cadafalso, dizia para o carrasco:
“Só mais um minuto, senhor carrasco, só mais um minuto”,
como se esse minuto fizesse alguma diferença, como se nele estivesse contida a esperança ilusória de eternidade, como se o tempo que falta pudesse ser redentor. Aquele minuto era, afinal, a vida inteira.
Um diplomata – ou pelo menos um diplomata como eu, não quero arriscar generalizações – é um nómada por natureza, um viciado em desassossego, um cultor da inquietude, um andarilho que não conhece cansaço. No cumprimento desse ritual, eis pois chegado o tempo de, como diz José Tolentino de Mendonça,
“incendiar a casa e partir de bicicleta”,
na ilusão sempre renovada de ter o mundo em nós.
Eu não sou parte daquele grupo de portugueses, a quem Álvaro de Campos se referiu dizendo
“depois de estar a Índia descoberta, ficaram sem trabalho”.
A quem aqui está hoje quero, no entanto, dizer que o “eu” que parte é diferente do “eu” que chegou. Os que estão aqui nesta sala (e outros que não puderam vir) fizeram de mim, por razões distintas e bem precisas, o que sou hoje e os quatro anos de Bruxelas foram mais do que um tempo de trabalho: foram, se posso sintetizar numa expressão, o tempo da festa do vinho novo, da plenitude. Resta-me saber se descoberta ou reencontrada. Conto com a vossa indulgência para acreditarem, ao arrepio do que dizem alguns filósofos, que existe qualquer coisa para além das palavras que podemos ou sabemos dizer.
III.
É chegado um novo tempo: o das cerejeiras em flor, do elogio da sombra, da cerimónia do chá, do oriente do oriente, dos amores dos samorais, da limpidez das gueixas, duma luz que não se apaga, do tempo que Tonino Guerra explica ser o de
“medir as horas pelos raios de sol que se infiltram na cozinha”.
Este é o tempo de avançar de olhos fechados, entre a euforia e a voragem de rasgar um tempo que é novo e que surge de mãos dadas com o precipício que as horas tardias trazem dentro.
Mas acredito que não vou sozinho, e isto por duas razões:
- em primeiro lugar porque espero que me vão acompanhando – e aqui vai uma notícia em primeiríssima mão – no meu blog que podem consultar em regresso-a-itaca.blogspot.com
- mas sobretudo, porque nunca vai sozinho aquele viajante, como o viajante de Ítaca, no poema de Kavafis, que tem sempre em mente regressar: por mais belos que sejam os corais e as madrepérolas, as cores do âmbar e do marfim, inebriantes que sejam os odores dos perfumes e infindas as linhas das cidades, por mais raras que sejam as mercadorias que se vendem nos portos longínquos, no final, o viajante pode ser senhor de tanta experiência ao ponto de compreender o sentido de Ítaca. Mas o viajante volta aonde pertence e só depois de voltar, só depois de voltar, percebe então o sentido da viagem que fez.
Muito obrigado
Aqui fica o texto que li na Livraria Orfeu no sábado passado.
Partidas
I.
O tempo de partidas é, por natureza, tempo de balanços. Vou poupar-vos a terem de me ouvir neste exercício: deixo-o para um plano pessoal ou para o Senhor Embaixador Bramão Ramos no que à avaliação e ao SIADAP diz respeito. Poupo-vos também a um rol de agradecimentos nomeados um a um. Esta semana sai um pequeno artigo meu no LusoJornal em que faço esse agradecimento público a todos com quem trabalhei. O “obrigado” que aí desenvolvo, deixo-o aqui de forma genérica, mas não menos sentida, a todos e a cada um com quem me cruzei ao longo dos últimos quatro anos.
Há, no entanto, um aspecto a que não me quero furtar: uma palavra sobre o trabalho consular na Bélgica, por causa das minhas funções de Encarregado da Secção Consular. Dentro da panóplia de tarefas que estão acometidas a um diplomata, esta é, sem dúvida, uma das mais estimulantes. Eu tenho, naturalmente, o prazer da escrita, de elaborar um texto de análise mais política e todos os colegas diplomatas aqui já experimentaram isto: escrever um telegrama para a Secretaria de Estado (para usar a velha terminologia da casa), chegar ao fim e ter aquela sensação de auto-comprazimento perante um resultado que sabemos que nos deixa satisfeitos. Envia-se o telegrama e pronto. Não há – nem tem de haver! – reacção. Alguém em Lisboa o lê, partilha, ou não, do gosto pela prosa, e arquiva o telegrama à espera de ser necessário fazer um apontamento.
Com o trabalho consular é diferente: em cada tarefa há um resultado que se vê. Cada gesto é pensado para uma pessoa; cada medida tem um destinatário com rosto; cada palavra produz efeitos em quem nos ouve. Desde que estou em posto, já devo ter escrito umas centenas de telegramas: mas nada se compara à satisfação de conseguir repatriar, em duas horas, um compatriota que nos bate à porta sem amparo; à lição de vida que é visitar portugueses presos, que encontramos no fundo de corredores escuros, por detrás de grades opressivas; ao entusiasmo com que nos recebem na associação x ou y; à alegria com que nos mostram as taças; à generosidade impressiva com que vi pessoas trabalhar em associações, escolas, grupos, paróquias, órgãos consultivos; à disponibilidade de pais, professores, artistas, empresários e outros que partilham das suas horas com a comunidade. Foram todos para mim uma lição permanente, deram-me mais do que podem, remotamente, imaginar.
II.
Numa das epístolas de S. Paulo, diz-se que
“para tudo há um momento, e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu”.
Fui há dias reler este texto e constatei que não se fala lá do tempo de chegar e do tempo de partir. E, no entanto, são tempos óbvios na vida de cada um. A mim, chegou-me agora o tempo de partir de Bruxelas, depois de quatro anos que passaram num ápice. Olho para trás e sinto essa coisa crudelíssima que é não sermos mestres mas servos de um tempo que não chega a ser o nosso. Quatro anos escoaram-se com a rapidez duma manhã apressada, com a leveza dum jantar de amigos. Agora que estou quase em vésperas de partir, apetece-me dizer como Maria Antonieta, já no cadafalso, dizia para o carrasco:
“Só mais um minuto, senhor carrasco, só mais um minuto”,
como se esse minuto fizesse alguma diferença, como se nele estivesse contida a esperança ilusória de eternidade, como se o tempo que falta pudesse ser redentor. Aquele minuto era, afinal, a vida inteira.
Um diplomata – ou pelo menos um diplomata como eu, não quero arriscar generalizações – é um nómada por natureza, um viciado em desassossego, um cultor da inquietude, um andarilho que não conhece cansaço. No cumprimento desse ritual, eis pois chegado o tempo de, como diz José Tolentino de Mendonça,
“incendiar a casa e partir de bicicleta”,
na ilusão sempre renovada de ter o mundo em nós.
Eu não sou parte daquele grupo de portugueses, a quem Álvaro de Campos se referiu dizendo
“depois de estar a Índia descoberta, ficaram sem trabalho”.
A quem aqui está hoje quero, no entanto, dizer que o “eu” que parte é diferente do “eu” que chegou. Os que estão aqui nesta sala (e outros que não puderam vir) fizeram de mim, por razões distintas e bem precisas, o que sou hoje e os quatro anos de Bruxelas foram mais do que um tempo de trabalho: foram, se posso sintetizar numa expressão, o tempo da festa do vinho novo, da plenitude. Resta-me saber se descoberta ou reencontrada. Conto com a vossa indulgência para acreditarem, ao arrepio do que dizem alguns filósofos, que existe qualquer coisa para além das palavras que podemos ou sabemos dizer.
III.
É chegado um novo tempo: o das cerejeiras em flor, do elogio da sombra, da cerimónia do chá, do oriente do oriente, dos amores dos samorais, da limpidez das gueixas, duma luz que não se apaga, do tempo que Tonino Guerra explica ser o de
“medir as horas pelos raios de sol que se infiltram na cozinha”.
Este é o tempo de avançar de olhos fechados, entre a euforia e a voragem de rasgar um tempo que é novo e que surge de mãos dadas com o precipício que as horas tardias trazem dentro.
Mas acredito que não vou sozinho, e isto por duas razões:
- em primeiro lugar porque espero que me vão acompanhando – e aqui vai uma notícia em primeiríssima mão – no meu blog que podem consultar em regresso-a-itaca.blogspot.com
- mas sobretudo, porque nunca vai sozinho aquele viajante, como o viajante de Ítaca, no poema de Kavafis, que tem sempre em mente regressar: por mais belos que sejam os corais e as madrepérolas, as cores do âmbar e do marfim, inebriantes que sejam os odores dos perfumes e infindas as linhas das cidades, por mais raras que sejam as mercadorias que se vendem nos portos longínquos, no final, o viajante pode ser senhor de tanta experiência ao ponto de compreender o sentido de Ítaca. Mas o viajante volta aonde pertence e só depois de voltar, só depois de voltar, percebe então o sentido da viagem que fez.
Muito obrigado
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