04/08/2010


ON THE ROAD (AND WHO F****** CARES ABOUT THE ROAD SIGNS?)



O que será pior? A tradução de Ana Godinho ou a prosa original de Yves Buin? Merecem-se. Os dislates do autor encontram eco no terror interpretativo da tradutora.

Vejamos alguns exemplos: logo na 6ª linha do livro (repito: na 6ª linha do livro, no 1º capítulo, naquele momento em que qualquer leitor de boa fé, relativamente a qualquer livro, está virgem de juízos, disposto a aceitar render-se ao que aí vem) surge a frase "à muito tempo". Assim mesmo: um erro de palmatória que, em tempos, dava reprovação no exame da 4ª classe. A ignorância ignominiosa da tradutora escapou ao revisor, pelo que fiquei logo mal disposto ao fim de dois minutos. Mas prossegui, porém, não sem sacrifício. As frases são tão longas que é preciso uma garrafa de oxigénio para chegar ao fim e um caderno de apontamentos para perceber a ideia. Ontem dei por uma frase que ocupava meia página e tinha três orações intercaladas na frase principal. Depois, de mãos dadas com os erros ortográficos (alma caridosa dizia-me que eram "gralhas") ou com frases sem verbo (juro!), há uma paleta de vocabulário que a tradutora terá ido buscar ao 'google' ou coisa que o valha e que tem o apogeu no repetido e delicioso termo 'felação'. Kerouac, em cada capítulo, cede à 'felação' na sua voragem sexual. Ora aceita fazer uma 'felação', ora deixa que lha façam.

Mas a verdade é que a tradutora Godinho não vai só na tragédia kerouaquiana: o autor deixa que a pena lhe escorregue para um certo delírio pretensioso, abandonando o fio dos acontecimentos e permitindo-se comentários pura e simplesmente impossíveis de sustentar. Exemplo: "nessa noite Kerouac estava tão embriagado que não sabia quem era ou de onde vinha". Como é que Buin sabe isso? Perguntou a Kerouac se, em tal noite etílica, tinha perdido a consciência de si? Deixou Kerouac escrito tal coisa sobre essa madrugada baquiana? Não se explica, não se cita, não se fundamenta.

Jack Kerouac é um escritor maior na literatura americana, expoente e criador da beat generation, que marcou a cultura pop não só ao nível da literatura mas também em outras áreas, do jazz às artes plásticas (fica-se a saber no livro que Kerouac e os amigos, em certa noite, deram pancada em Andy Warhol). Mas é discutível se a sua vida é biografável fora de um certo circuito especializado, o que de resto não levanta um problema de maior nem diminiu Kerouac, se pensarmos no que foi a vida de Kant.

Kerouac merecia melhor. Não digo uma estrada sem curvas mas, ao menos, respeito pelos sinais de trânsito.

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