MURAIS EM BRUXELAS









"Que sucederia se também ele entrasse no seu próprio banho de sangue? Confusamente o sabia, na mesma carne que tremeu. Sairia dali velho e mirrado, cego e surdo, sem outra voz que um crocitar de um corvo. Então, sorvendo bem a saliva e pigarreando forte, escarrou na água."
Jorge de Sena, O físico prodigioso
"...à notícia desta morte, o primeiro pensamento que ocorreu a todos os senhores reunidos no gabinete incidia no significado que tal falecimento teria nas remoções ou promoções dos membros ali presentes ou dos seus conhecidos. 'Agora talvez me calhe o cargo de Stabel ou de Vínnikov."
Lev Tolstói, A morte de Ivan Iliitch
"O que a República Francesa demorara décadas e o choque do caso Dreyfuss para conseguir, a sua homóloga portuguesa tinha concretizado no espaço de alguns meses. 'O Mundo' estava extático: O grande estadista que estudou e redigiu esta lei, o sr. dr. Afonso Costa, acaba de cimentar, definitivamente o glorioso edifício da revolução. Chama-se a isto fazer repúlica, organizando a república."
Filipe R. de Menezes, Afonso Costa
"As luzes do aeroporto são muito brilhantes, o chão escorregadio, os viajantes atrasados são chamados ao microfone, há os que se abraçam e se beijam, os que choram, os que sorriem e os que acenam como se não fossem ter saudades. As chegadas e as partidas são assunto de gestão cautelosa. O mundo é sempre grande de mais para os que se estão a separar. E não se torna pequeno para os que se acabam de juntar."
Dulce Maria Cardoso, O Chão dos Pardais
"A religião oficiosa de Timor é uma adoração simbiótica entre vassalagem medieval e piedade franciscana. A Igreja do Vaticano deu aos timorenses o missal em tétum e a condição institucional de nação perseguida. É um capital que se projecta no tempo psicológico da culpa, uma eternidade!, muito além do tempo histórico da perseguição. O que vejo: a língua eucarística e a narrativa de vitimização são os dois tesouros nacionais do génesis do Estado Lorosae."
Pedro Rosa Mendes, Peregrinação de Enmanuel Jhesus
"As opiniões dividiam-se em duas correntes. Os comunistas, como seria de esperar, desejavam a guerra com ardor e arrebatamento. Os nacionalistas não eram contra, mas o ardor e o arrebatamento não faziam o seu género. Segundo eles, o excesso de ardor estava mais ligado aos interesses da Rússia do que aos interesses da Albânia. Na sua opinião, aquela não se lançara às cegas no conflito sem avaliar as suas próprias vantagens. A Alemanha seria uma potência ocupante mas a Rússia vermelha não era melhor. Além disso, a Alemanha restituía-lhes o Kosovo e Çameri enquanto a Rússia, para além dos kolkhozy, nada de nada! Parecia até provável que a "Albânia étnica", que figurava nos panfletos alemães, em vez de os alegrarem arrepiassem os comunistas."
Ismail Kadaré, Um Jantar a mais
"Se a pessoa bebia, começava a ter problemas no fígado e no pâncreas; se comia à vontade, o índice de colesterol aumentava; se fumasse, agarrava-se aos pulmões um cancro assassino - fizesse o que fizesse, o finlandês arranjava sempre maneira de culpar o vizinho. (...) Em conversa sobre todas estas coisas, os suicidas começavam a dizer-se que, bem vistas as coisas, até estavam em melhor situação que os seus compatriotas obrigados a permanecer na sua sinistra pátria. Esta constatação encheu-os de felicidade pela primeira vez em muito tempo."
Arto Paasilina, Um aprazível suicídio em grupo
(post dedicado à ACM - e às horas doces e amargas de Helsínquia)
No Verão de 1999, fiquei fechado em casa a escrever a minha tese de mestrado (mestrado pré-Bolonha...). Foram muitas semanas a trabalhar ao computador mais de 12 horas por dia. Uma 4ª feira, em finais de Agosto, achei que ia "flipar": saí de casa, entrei na primeira agência de viagem que encontrei e pedi um bilhete para um sítio qualquer para um fim-de-semana alargado na praia. Condição: sol e partida imediata na manhã seguinte. Fui para Porto Santo, era o que havia. Sózinho? Não: fui com "Vou lá visitar pastores", de Ruy Duarte de Carvalho. Lembro-me do meu espanto, sentado numa esplanada madeirense a ler o livro, espanto esse que de imediato partilhei com José Tolentino de Mendonça, com quem jantei no Funchal. Estava eu longe de imaginar que os meus destinos se iam cruzar com Angola. Muito do que percebi de Angola, percebi graças a Ruy Duarte de Carvalho (sobretudo as "Actas da Maianga"). No modo de cruzar saberes, Carvalho era quase um homem renascentista. Morreu ontem na Namíbia.
" 'Once upon a time' becomes 'once upon no time'. Trauma memory has no narration. Stories always take place in time. They have a sequence, and they are always behind us. Those four nights of reenactment were wordless. I could not say, Oh, yes, that happened four days ago when my husband, daughter, our dog, and I were driving home from the country. A speeding van hit us at an intersection. The car was completely destroyed but we survived. The experience has no context, no place, and has it has in no way diminished by distance. The violence burst into my sleep nowhere and shocked me with the same force as the accident itself."
Siri Hustvedt, The shaking woman or A history of my nerves
A relação de Margarite Yourcenar com Bruxelas - ou com a Bélgica em geral - foi sempre distante. E, no entanto, foi aqui que nasceu, no nº 193 da Avenue Louise, a 8 de Junho de 1903. Viveu nesta casa pouco tempo, já que, como se sabe, a sua vida foi pródiga em partidas até se instalar definitivamente com Grace nos EUA.
Este é o prédio que existe actualmente no nº 193 e que não corresponde à casa onde Yourcenar nasceu. O original foi destruído em 1970.
Num trecho da sua própria obra, Yourcenar faz uma referência a este local. Este trecho faz parte dum monumento de Jean François Octave que existe hoje, mesmo em frente ao nº 193.
Um dia, eu ia a passar com alguém em frente a esta casa e comentei - "sabias que foi nesta casa que nasceu a Margarite Yourcenar?". Resposta: "quem é essa?". Mesmo involuntário, foi uma forma de harakiri...
... aqui fica mais um e o acertadíssimo comentário de Duarte Calvão sobre o livro.