07/06/2011


Organizar a vida através dos telemóveis




Eu sei que é estranho mas tenho três telemóveis: um português, um belga e um japonês. O nipónico é de uso local e quotidiano mas dos outros não me posso desfazer, como se tal gesto fosse uma afronta, não ao passado, mas ao que no presente dele perdura. Acreditem que não é fácil gerir cartões SIM, pagamentos e carregadores, todos de marcas diferentes.

Há dias, numa viagem de comboio entre dois países europeus, percorri as agendas à procura de um número - sei que tenho o contacto de X mas não tinha a certeza em que telemóvel estava. O mais estranho não foi, porém, a patética cena de um viajante ganzado de jet lag a gerir três telemóveis num lusco-fusco ferroviário europeu. O mais estranho foi percorrer nomes cujas referências já não me pertencem, a que associo caras com contornos já esbatidos: quem será a personagem que surge identificada como a "Tatiana Polónia"? e a "Nelly Loura"? e o "Peter checo"? Seria o canalizador bruxelense? mas dele só me lembro que me cobrou 25 euros para mudar umas borrachas na torneira da cozinha. Nunca retive a nacionalidade - só me lembro que arranhava francês como quem soluça depois de um vinho rasca.

Depois há nomes de mortos: o que fazer com eles? Preservá-los é mórbido. Apagá-los parece uma traição canalha. Há gente por quem suspiramos de alívio por terem desaparecido da nossa vida - contactos que, por termos mudado de azimute, prescreveram nos nossos dias; há outros que num instante se impõem credores de momentos irrepetíveis. Há ainda os que registámos para ter a certeza que nunca iríamos ter de atender; os que de tantas vezes marcar, sabemos de cor; os que quando pipilam no visor do telemóvel nos fazem tremuras, esgares de pânico ou cólicas; os que, ao invés, nos resgatam à fealdade dos dias; aqueles com quem trocamos sms's noite dentro, condensando sussuros indizíveis.

Objecto vilipendiado, odiado e desejado, guardador de mistérios e traições, de segredos e revelações. Dir-se-ia que é horrível ter três telemóveis. Eu diria que afinal é fonte inesgotável de sensações. No meu caso, a multiplicar por três.


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