31/05/2010



UM INGLÊS EM CARTAGO

Não me chegou a dizer como se chamava. Disse-me apenas que tinha 80 anos e era de Liverpool. Usava umas calças de linho bege, impecavelmente engomadas, uma camisa oxford e um chapéu panamá. Debaixo duns óculos grandes, tinha uns olhos amendoados. Ao pescoço trazia pendurada uma maquina fotográfica, modelo antigo, do tempo em que tirar fotografias era uma coisa requintada e se esperava que os rolos viessem da revelação. Estava apoiado num bengala fina, com punho de prata mas o adereço servia menos para o apoiar e mais para prolongar a indignação gesticulante com que apontava para os despojos de Cartago: "what have they done to this?", repetiu várias vezes, em fúria crescente, a disfarçar aquele desprezo endógeno que os ingleses têm por tudo o que vem de fora e por quem não bebe chá às cinco. Queria conversa e dei-lha -esteve em Cartago, pela primeira vez, há 40 anos, viveu um ano em Tunis nos anos 80 (veio por 15 dias, ficou 11 meses), tem um joelho de titânio que pôs há 3 anos em Chicago, não referiu família e disse-se, pudicamente, "consultor internacional" (naquela idade? não sei porquê mas aquilo cheirou-me a MI5). Deu-me o braço sem pedir, arrastou-me para a sombra e desdobrou um mapa de Cartago, velhíssimo, a preto e branco onde tentou identificar, perante o meu silêncio estupefacto, as pedras que nos rodeavam.
E, como chegou, partiu, falando sózinho, debaixo dum abrasador sol africano. Fotografava em periclitante desequilíbrio ajeitando, muito lentamente, o chapéu panamá.

17/05/2010

PUDORES


A professora Bruna Real fez mais por Mirandela do que décadas a promover alheiras. Farta do degredo e sobretudo farta dos salários miseráveis que em Portugal se pagam aos professores, decidiu sacudir a roupa e pousar nua para a Playboy. Acudam: a sacristia abanou, a província soçobrou e a vereadora Gentil disse que a docente já não servia (ao que parece sem sequer um processo disciplinar). Ora, que a professora Bruna Real é boa, é algo que não se pode negar. Não constam contra ela queixas pedagógicas nem reparos científicos. Qual o pecadilho? Mostrar as mamocas ao país (parece que em Mirandela a revista esgotou). E o país, entre a visita papal e as medidas anti-crise, em vez de sacudir os ombros e se preocupar com o que devia, anda indignado. Que os pais e as mães de Mirandela possam ser livres de decidir de quem ensina os seus filhos (e por isso são livres de, querendo, colocar os petizes noutra escola com uma beatífica docente, toda tapadinha, óculos magistrais, cabelinho aprumado, saia abaixo do joelho, ponteiro em riste e saltos pesados sobre o estrado) é um direito inquestionável. Já que a câmara municipal afaste Bruna Real, a quem - repita-se - não impede qualquer acusação administrativa ou pedagógica, isso mostra que o nosso bom e velho Conselheiro Acácio ainda anda por aí. E como no Eça, se formos ver bem, se calhar o velho conselheiro anda amancebado com uma qualquer criadita. Que, em todo o caso, não será a Bruna Real. Não me parece que a moça ande por aí a perder o seu tempo.

14/05/2010

A PROPÓSITO DA VISITA DE BENTO XVI A PORTUGAL


Reconhecer a centralidade da herança judaico-cristã no ocidente e a importância do catolicismo nas sociedades europeias é uma evidência. É assim: o múnus da igreja de Roma fez de nós quem nós somos (para o bem e para o mal) e negá-lo é negar-se a si mesmo. Nada disto tem a ver com o grau de adesão ao sucessor de Pedro, mais ou menos carismático, diz o povo, como se estivéssemos a falar dum grupo de música pop. Bento XVI, para início de conversa, é um Chefe de Estado, arquitecto político de geometrias que, tantas vezes (as mais das vezes), oscilam entre o bizarro e o espúrio. Não o compreendeu Estaline que perguntou quantas tropas tinha o Papa, não percebendo que estas tropas não são as das trincheiras mas, muito mais perigosas, as dos baluartes do dia a dia.

Eis o ponto de partida essencial para perceber os atavismos romanos. Do romeiro em busca de Jerusalém ficou um mal disfarçado proselitismo cavado, amiúde, sobre um défice de compreensão caleidoscópica do outro. Da negação feuerbachiana do corpo, ficou o lastro do divórcio entre Eros e Ágape (salvaram o Filo), com repercussões devastadoras e que, ironia pérfida, atingem agora a própria instituição eclesial. Da arquetipização fálica do poder ficou a subsunção feminina remetida a um convenientemente dócil culto mariano, para decoro das consciências.

Sabem-nos os que leram Thomas Mann que a lógica discursiva da fé vence todas as batalhas porque explica tudo, impregnada pela força do espírito, varrendo argumentos e argumentadores: na batalha entre a razão e a fé, é sempre a última que sai vencedora porque é combatente incansável, é luz que não se apaga.

Confundir Cristo com a igreja é tomar a árvore pela floresta, o deserto de sal pelo sal do deserto, o Manuel Germano pelo genoma humano, a obra prima do mestre pela prima do mestre de obras. Alguém me dizia há dias que os escolhos do caminho da apostasia são afinal, como a beleza para Platão, o rosto visível do sagrado, a parte de deus que podemos suportar com os sentidos. Há muitos caminhos para chegar ao belo. Resta saber quem são os escolhidos. Mas sobretudo, resta saber onde arde a última vela a apontar o caminho da redenção. Tenho para mim que a resposta é menos evidente do que se julga.

13/05/2010

06/05/2010


NO MORE BEGINNINGS

Na madrugada do dia 21 de Outubro de 2004 aterrei em Luanda. Depois do pequeno almoço na pastelaria Nilo, instalaram-me num apartamento que iria ser remodelado mas que, naquele momento, estava num estado próximo do lastimável e parcamente mobilado. No quarto havia uma cama, uma mesa de cabeceira e um armário. Quando abri o armário para pendurar as camisas, fiquei com a porta do dito na mão e o secular guarda fatos ameaçou desfazer-se. Percebi então que aquilo não ia ser fácil. Percebi que só na má ficção os "começos" estão besuntados de encantamento.

04/05/2010


Telefonaram-me à hora de almoço a dizer que tinha morrido (ao que parece ontem) a minha antiga professora primária. Poupar-vos-ei aos circunstancialismos piedosos que o 'requiem' inspira: as recordações que tenho dela não são as mais brilhantes, por razões que seria deselegante aqui evocar neste momento. É verdade que os tempos eram outros e não tinha pegado a moda do "pedagogês". Se isso não desculpa episódios que não esqueço, também não duvido que, nas suas imensas limitações, terá procurado fazer o melhor que sabia. Aquela mulher foi quem me ensinou a ler e por isso, apesar de tudo, hoje, curvo-me perante a sua memória.