31/01/2011


Abertura da Sessão Legislativa na Dieta



Estive a semana passada na Dieta para a cerimónia de abertura da 177ª Sessão da Dieta (o parlamento japonês). Uma cerimónia impressionante que leva a rigor um ritual performativo pensado ao segundo e onde, salvo os partidos da extrema-esquerda, se sente interiorizado o respeito por um conceito de soberania que passa, quase exclusivamente, pela figura do Imperador ("a soberania una e indivisível que reside no povo" é invenção das cabeças não decapitadas na comuna de Paris...).

Sentado nas galerias, onde estão os convidados, não deixa o visitante de se impressionar - e muito - com a imagem de ver 480 deputados e uma vintena de governantes vestidos a rigor (eles de fraque; elas de quimono) que, ao soar da batida, se levantam e se inclinam naquela vénia vincadíssima que se reserva para o Chefe de Estado. O Imperador Akihito entra na grande sala da Câmara dos Representantes e, passos pequenos, dirige-se para o trono imperial perante meio milhar de súbditos que não mexem um músculo perante alguém que, há pouco mais de 60 anos, se cria que tinha um poder directamente transmitido por deus.

A cerimónia dura exactamente 7 minutos: um minuto de vénias; dois minutos de discurso do speaker; três minutos de discurso do Imperador e um minuto final de mais vénias e saída.

Durante aqueles minutos sagrados da liturgia democrática, quase se ouve o palpitar dos corações presentes tal é o silêncio que só a oratória imperial e o disparar das máquinas fotográficas interrompe.

30/01/2011

Domingo de Versos - Al Berto



E ao anoitecer

e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia

Al Berto

28/01/2011


O PAVIMENTO DE NEVE



Quando visitaram a casa, no velho quarteirão da cidade, encontraram Shirikawa já morto de fome, no seu quarto de dormir. O apartamento tinha ainda dois outros aposentos. Ambos sem mobília. No primeiro, estavam apenas três cadeiras negras, de tipo europeu, encostadas à janela, como se alguém estivesse disposto a contar, pela janela, as mil folhas do plátano. Depois percebeu-se que as cadeiras eram dos três magríssimos gatos, companheiros do velho. Na terceira sala, o pavimento apresentava-se coberto por um manto de arroz muito branco. Shirikawa nascera em Chichibu, uma aldeia do Norte do Japão. Desde jovem, durante a procissão para a queda das primeiras neves, tocava um pequeno ko-daiko*.
Porque será que Shirikawa, possuindo todo aquele arroz, se deixara morrer de fome?
Quando o levaram com a liteira, alguém experimentou deitar-se na cama, até assumir a posição exacta do morto. Com a cabeça pousada sobre o travesseiro, para além do corredor, viu o quarto com o pavimento de arroz. Saboreou a doce contemplação da neve pousada, e até a cor de cinza da parede do fundo parecia inverter-se para formar um céu frio e invernal.
Depois de longa investigação no quarteirão, descobriu-se que Shirikawa, desde há alguns anos, sofria com saudades da neve. Aquele era um lugar onde nunca nevava.

* Pequeno instrumento de percussão muito usado no Japão

Tonino Guerra, Histórias para uma noite de calmaria

(lido há muitos anos, quando nem sonhava com o Japão, e recordado esta semana via
Bibliotecário de Babel)

27/01/2011


50 anos no Japão



A imagem acima é a capa do dicionário japonês - português que comprei a semana passada. Naquelas páginas estão mais de duas décadas de trabalho árduo, intenso, generoso e dedicado. É o projecto de uma vida do Padre Jaime Coelho, jesuíta, há 50 anos no Japão, investigador, filólogo e antigo professor da Universidade Sofia de Tóquio. O Padre Jaime Coelho trabalha agora na versão português - japonês, que esperamos possa estar nas bancas rapidamente.

O autor, com quem tive o gosto de almoçar a semana passada - espero que ele me perdoe a inconfindência da agenda - é um testemunho vivo do último meio século das relações entre os dois países e fala com a vivacidade de um jovem e com a inteligência sólida de um jesuíta. Um gosto.

26/01/2011


Let's go to the movies!



Lessons to be learned: (i) there is such thing as "green-tea popcorn". Seat as far as possible from the eaters, it stinks. (ii) movies have to be choosen very carefully as a simple ticket costs 18 euros. (iii) when you buy the ticket, the girl says: 'the movie you have asked for finishes at 23:57. Is that ok?'. And if I had said 'no' ?

(the film was "The Social Network" - very disapointing)

25/01/2011


Um post onde se fala do "romance", da "Time", de Frazen, do "Expresso", de António Guerreiro, do Miguel Sousa Tavares, da Margarida Rebelo Pinto e de Eduardo Lourenço



António Guerreiro, que é talvez quem melhor escreve na imprensa portuguesa hoje em dia, escreveu no "Expresso" de 15 de Janeiro um ensaio sobre o "romance como o cancro da literatura". Era um grito de alguma revolta contra o artigo de Grossman na Time e que transformou Jonathan Frazen no hype da literatura contemporânea. A Time fez a publicidade que nenhuma agência jamais conseguiria, dizendo de Frazen ser the great American novelist. Mas, como Guerreiro bem recorda, Grossman (que bloga aqui) tem uma frase que, embora escrita como elogio, é crudelíssima: diz que Freedom é um "grande romance à século XIX, mais do que à século XXI". E isso fez-me lembrar uma entrevista que reli recentemente onde Eduardo Lourenço, elegante, humorado e subtilíssimo, dizia de "Equador" de Sousa Tavares, que era "o último grande romance do século XIX português".

Isto leva-me ao ponto seguinte: ando à semanas para "compra/ não-compra" o Freedom mas depois disto acho que já não me apetece muito lê-lo... Alguém já se aventurou?

E já agora: não partilho da tese de Guerreiro quanto à morte do romance como sub-produto literário da burguesia romântica (o que, como tese, nem sequer é novo). Há é que fazer a distinção entre o lixo tóxico para manicures sub-urbanas que querem entrar no Lux, enredadas à procura de glamour nos livros de Rebelo Pinto (e pseudo-aventureiros engatatões de carro desportivo a ler o Sousa Tavares: dá quase no mesmo) e aquele outro patamar em que ficamos suspensos das páginas como quem fica suspenso da vida. Aqueles livros que nos levam a tactear um terreno onde já não se distingue a luz da sombra.

24/01/2011

RYOANJI GARDEN, The ultimate Japanese Garden



It is a simple but remarkable garden: 25 meters long and 10 meters depth. No trees, just 15 rocks and white gravel. It is believed that the rock garden of Ryoanji (in Kyoto) was created around 1500 by a Zen monk called Zenketsu and it is now-a-days one of the most visted gardens of Japan as it has become a symbol of simplicity, elegance and spirituality. Thousands of pages have been written about this square garden: some have seen animals and hope stories; others, islands in a sea of uncertainty - but it is up to each visitor to find out for himself what this garden means. It may be hard but it is challenging and inspiring. Not to be missed.

23/01/2011

Domingo de versos, António Franco Alexandre





um bicho guarda (em osso) a mansidão da terra
com dentes guarda: tem
palavras angulosas, pinhos, astros,
água aguçada em frincha
não se poupa.

António Franco Alexandre, Poemas

21/01/2011


Quioto: o Templo Dourado






"O Templo Dourado é uma construção de dois andares, dominando o lago - dito «Espelho de Água» - de um jardim. Pensa-se que foi acabado em 1398, quinto ano da época Oei. O arquitecto do rés-do-chão e do primeiro andar é do tipo doméstico «Shinden» com persianas de baixar. O segundo andar é uma sala de cinco a seis metros quadrados, no mais puro estilo Zen, com uma porta central de almofada e cruzetas, e janelas de florões de ambos os lados. O telhado é em ripas de ciprestes. É do tipo «Hokei», encimado por uma fénix em bronze dourado.



Igual à lua no céu noctrino, o Templo Dourado fora edificado como símbolo do tempo das trevas. Por isso era indispensável que o templo do meu sonho se erguesse dum fundo de noite densa - uma noite que o encerrasse de todos os lados. E dentro dessa noite negra, a textura de esplêndidas e esbeltas colunas repousava, calma, serena, levemente iluminada do interior. Quaisquer que fossem os discursos que lhe pudessem dirigir, era necessário que o templo maravilhoso continuasse a oferecer silenciosamente a todos os olhares a sua delicada arquitectura, e a sofrer o assalto das trevas circundantes.


Pensei também no fénix de ouro que no alto do telhado ficara, anos e anos, exposto às intempéries. O misterioso pássaro, de nunca anunciar o raiar do dia, de nunca bater asas, deveria ter-se esquecido de quem era.




Quando o meu pensamento se libertava, o Templo Dourado surgia-me como um magnífico navio atravessando o oceano dos tempos."

Yukio Mishima, O Templo Dourado

(à atenção de eventuais visitantes: ler "O Templo Dourado" de Mishima é obrigatório antes de vir ao Japão. Existe uma edição da Assírio mas a tradução é má. Podendo, é melhor ler as traduções inglesa ou francesa. Não sei o que vos diga sobre o Templo Dourado a não ser que é um espanto radical e absoluto. Mas como as citações - esse amor despudorado pelas palavras - existem como sinal de humildade (e não de arrogância como pensam alguns), deixo-vos com o Mishima. Não podiam aliás, literariamente falando, ficar em melhor companhia).

20/01/2011

Silêncio, de Shusaku Endo



Correndo o ano da graça de 1636, Roma e Lisboa recebem, com incredibilidade, a notícia que o Padre Cristóvão Ferreira, jesuíta devoto e pregador exemplar, tinha negado a fé cristã, lá longe, em Nagasáqui, onde exercia o mister de Cristo. Amigos e discípulos lembravam o fervor do clérigo e recusaram-se aceitar que Ferreira tivesse soçobrado na crença perante um Japão adverso e budista. O Padre Sebastião Rodrigues, ex-pupilo de Ferreira, parte em busca do antigo mestre, vencendo marés e adversidades e aporta em Macau antes de prosseguir para essa terra estranha, ilha grande para lá da China, como dissera Marco Pólo.

Continuar a ler a minha recensão
aqui.

19/01/2011

O Japão, por Eugénio de Andrade



«O silêncio é a minha maior tentação. As palavras, esse vício ocidental, estão gastas, envelhecidas, envilecidas. Fatigam, exasperam. E mentem, separam, ferem. Também apaziguam, é certo, mas é mais raro. A plenitude do silêncio só os orientais a conhecem».

Eugénio de Andrade

18/01/2011

Diplomacia sexual



"Os japoneses desconhecem totalmente o namoro, o jogo de olhares, os sorrisos insinuantes, toda essa complicada diplomacia sexual, em que os povos do Ocidente se mostram mestres, com efeito".

Wenceslau de Moraes, Relance da Alma Japonesa

Relembro que Wenceslau foi diplomata e sabia, certamente, do que falava. Dedicado aos meus amigos que insistem que Wenceslau é literariamente pobrezinho. Olhem que não, senhores doutores, olhem que não...

17/01/2011

TUNES, Avenue Bourguiba, Maio de 2010



Por causa do povo na rua em Tunes, comecei a ler há dias um livro chamado "Amours Errantes", de Ali Bécheur, que comprei numa livraria esconsa, em Tunes, em Maio passado. Passeava eu pela pequena secção francesa desta livraria escura mas charmosa quando dei com este livro dum advogado e activista tunisino e que comprei pela simples razão que o livro tem uma epígrafe de Fernando Pessoa.

Sobre o livro, que foi um best-seller na Tunísia, lembro-me de ter falado nessa mesma tarde numa esplanada na Avenida Bourguiba com um jovem assistente universitário, investigador em Oxford e em Siena, onde escrevia uma tese sobre literatura italiana. Gente de espírito fino, portanto.

Feito o intróito literário, consegui desviar gentil e cautelosamente a conversa para a política como era minha intenção. E o meu interlocutor garantia-me que Ben Ali era um democrata, eleito democraticamente pelo povo.

- Mais il a gagné les elections avec 99% des voix. Vous croyez que ça c'est normal? Vous avez vu ça en Angleterre ou en Italie, ou vous habitez quelques mois par an?, respondi.

Respondeu-me com a sabatina habitual nestes casos e que já conheço de cor: que eu queria analisar a situação com os olhos de um europeu, que tinha de compreender que existia mundo fora da Europa de Bruxelas, etc.

- Le Président Ben Ali est un père du peuple, il fait tout pour nous, on vit en pleine liberté et on en profite. Mais vous ne comprennez pas ça en Europe.

A conversa ainda continuou comigo a apontar exemplos e a fazer perguntas. Mas a verdade é que nenhum de nós se deixou demover.

Agora que o "pai do povo tunisino" partiu num avião sem regresso para a Arábia Saudita, tenho-me lembrado deste jovem investigador, um intelectual poliglota. Porventura, se estiver em Tunes, também andou pela rua a gritar pela liberdade. Mais vale tarde do que nunca.

16/01/2011


Domingo de versos - Teixeira de Pascoaes



E o Porto [é] de Herculano,
Como Lisboa é de Garrett.
Lisboa em gesso branco, o Porto em pedra escura,
Sobre os abruptos alcantis do Douro;
Esse rio que vem de longe, solitário,
Cobrir-se de asas brancas de navios
E de negros canudos de vapores.
Encostados aos cais, depõem a férrea carga.
Outros, vão demandando a barra e o farolim,
Que dá uma luz - tão triste! - em noites invernosas.

Teixeira de Pascoaes

(post dedicado ao meu amigo JPdS)

14/01/2011

Beware of the deers



... lovely spot in Nara Park. I'm just a bit surprised by the fact that the deers are potencialy dangerous. If that is the case, why aren't they put in cages, like in zoos, instead of being left free around the visitors?

13/01/2011


Japanglish

Existe aqui uma curiosa língua chamada “Japanglish” (como existe nos EUA, o “spanglish”), que é um cruzamento de japonês e inglês com umas traduções literais estranhíssimas. Pode não ser correcto (e não é) mas é divertido. E a verdade é que não obsta à comunicação (bom, às vezes…). Eis alguns exemplos:




12/01/2011


Quando a falta de espaço aguça o engenho



Com os problemas de espaço limitado no tecido urbano, o engenho japonês não tem limites: perante a impossibilidade de arrumar uma retrete e um lavatório na casa de banho, este último foi fusionado com o autoclismo, pondo-se uma torneira em cima e fica resolvido o problema. Genial. (só não percebi a função dos raminhos de flores de plástico mas é irrelevante...)

11/01/2011

É favor não beber o detergente...



Não vá algum distraído julgar que pode acompanhar a refeição com um copinho de detergente, e eis que este frasquinho de sabonete-líquido adverte o viajante incauto para aquilo que ele não imaginaria: é favor não beber o detergente...

10/01/2011


A livraria Keibunsya, em Quioto (nº 9 da top list do "Guardian")



Vários comboios depois, cheguei finalmente à livraria Keibunsya, em Quioto, que a célebre lista do Guardian considerou uma das melhores livrarias do mundo (e de onde também faz parte a portuense Lello e a bruxelense Posada). A primeira causa de espanto é como é que alguém se lembrou desta livraria dado o "ultra-periferismo" de que padece. Convenhamos: não só Quioto não é ao virar da esquina como, ainda por cima, a Keibunsya fica longe do centro da cidade, fora de mão e no meio de uma área residencial relativamente desinteressante.

Mas talvez isso torne a Keibunsya ainda mais atractiva: porque é um oásis de claridade no que pode ser considerado, do ponto de vista urbano, como um bairro acinzentado. Porque desafia o isolamento e insiste em mostrar a força da criatividade onde ela se julgava não poder habitar. A Keibunsya não é apenas uma livraria: tem uma galeria onde expõe trabalhos de jovens artistas, tem uma "corner-shop" de design que recupera linguagens mais tradicionais e tem um mobiliário retro que transporta o visitante para calendários distantes.

Claro que este exercício do Guardian vale o que vale (pouco mais do que nada) e qualquer inclusão ou exclusão pode ser discutida à saciedade. O Lonely Planet acaba de fazer também a sua lista do top-10 onde a Keibunsya não consta (mas de onde não se atreveram a tirar a Lello mesmo se a lista do LP é mais euro-cêntrica do que a do Guardian). Por mim confesso que não poria a Keibunsya na minha lista do top-10 mundial mas nem por isso a achei um lugar de peregrinação dispensável (sobretudo quando se anda por azimutes orientais).

É verdade que praticamente não tem livros a não ser em japonês mas um amante de livros - e de livrarias - sabe que isso é pouco relevante quando o objectivo é menos comprar livros e mais sentir o cheiro do pó que assenta, magnânime, em páginas para cujas palavras não chega a olhar.




09/01/2011

DOMINGO DE VERSOS - Natália Correia



Poema Involuntário

Decididamente a palavra
quer entrar no poema e dispõe
com caligráfica raiva
do que o poeta no poema põe.

Entretanto o poema subsiste
informal em teus olhos talvez
mas perdido se em precisa palavra
significas o que vês.

Virtualmente teus cabelos sabem
se espalhando avencas no travesseiro
que se eu digo prodigiosos cabelos
as insólitas flores que se abrem
não têm sua cor nem seu cheiro.

Finalmente vejo-te e sei que o mar
o pinheiro a nuvem valem a pena
e é assim que sem poetizar
se faz a si mesmo o poema.

Natália Correia, in O Vinho e a Lira

08/01/2011

CARLOS CASTRO (1945-2011)


Um odor de tragédia grega, um sentimento que se antecipa putrefacto e um cenário de apoteose teatral. Sem a respiração do espaço público, a brutalidade chega mesmo a redimir um certo lado vulgar. RIP

07/01/2011

Quando Deus bateu à porta de Philip Roth



Ao 32º livro de Philip Roth, Deus entrou de rompante. Numa obra antropomórfica até ao limite, o homem-medida-de-todas-as-coisas cede lugar ao divino. É verdade que o Deus judaico estava desde sempre na obra de Roth. Mas o judaísmo ali era mais cultural do que teológico, mais sociológico do que espiritual. Agora Bucky Cantor confronta tudo pelo crivo da fé: não lhe bastava a mãe ter morrido de parto; o pai ser ladrão e estar preso; os amigos terem ido para a guerra (o tempo da narrativa é 1944); ele próprio ter sido dado como inapto para servir o exército e o melhor amigo morrer em combate. Era preciso mais para fazer Cantor rasgar o seu tempo: era preciso uma epidemia de poliomelite que destrói a vida pacata de um judeu de Newark (where else?) e lhe abana todo o edifício de vida. Mais do que a tessitura narrativa impecável a que Roth nos habituou, o que este livro nos faz pensar é se se abre um capítulo de um Roth místico. Quando Cantor se interroga Forget about God, he told himself. Since when is God your business anyway?, serão essas as preces do próprio autor?

06/01/2011

Nossa Senhora de Fátima de Tóquio - os milagres impossíveis



S. passa sinais encarnados, pisa traços contínuos, fala com dois telemóveis ao mesmo tempo, entra em ruas em contra-mão, estaciona em qualquer lado e abre mapas e dossiers ao mesmo tempo que conduz. Mas, ao mesmo tempo, é a melhor ajuda que um estrangeiro recém-chegado pode ter: procura casas, negoceia o contrato, faz de intérprete, trata dos papéis da água/ luz/ gás/ telefone/ net. Viver com ela é perigoso. Viver sem ela é impossível.

Um dia, andando eu com ela no carro, agarrado ao banco e já branco, ousei perguntar:

- S., you don't have problems with the police?
- oh, yeah, I used to, but not after having gone to Fátima.

Como o inglês de S. é "comunicante" mas não estruturalmente sólido, pensei que se referiria a um qualquer templo shintoista. E disse:

- where is that?
- OOOHHHHH, you don't know Fátima, in Portugal? Where Our Lady talked to the 3 children?

Achei que não era possível, que era um delírio, um mal-entendido, um problema linguístico. Mas ela explicou:

- I'm not a believer but when I went to Portugal, I was very curious about Fátima and I went there and bought this key-ring (e mostrou-me um porta-chaves semelhante ao da fotografia acima). Now I have the blessing of the Lady and the police doesn't bother me anymore.

A próxima vez que ouvir dizer que Fátima é o "altar do mundo" já não vou achar exagerado - pelo menos é onde se imolam todos os pecadilhos automobilísticos da minha incontornável S..


05/01/2011


Kadomatsu - ou "bom ano"



Está à porta de todos os edifícios, privados ou públicos. Chama-se "kadomatsu" e significa literalmente "porta de pinheiro". Na tradição budista serve para acolher os espíritos e têm sempre três canas de bambu de alturas diferentes representando o céu (o mais alto), a humanidade e a terra (o mais baixo). Estão geralmente aos pares, um de cada lado das portas, representando o homem e a mulher. Na versão de Kyoto - já espalhada por todo o Japão - pode ser um simples arranjo de mesa ou para pendurar na porta. Têm, eminentemente, um significado religioso mas justamente a passagem de ano no Japão é, sobretudo, uma festa religiosa.

04/01/2011

03/01/2011

Aula de japonês ou curso de antropologia?




Um destes dias havia um artigo na imprensa sobre a dificuldade do japonês médio para falar línguas estrangeiras. O inglês é ensinado nas escolas mas é evidente que há uma dificuldade em usá-lo na prática quotidiana. O autor desse artigo, professor e pedagogo com experiência de ensino no Japão, explicava que, mesmo sabendo as regras gramaticais, o aluno médio japonês enfrenta uma enorme barreira para chegar a ter uma competência discursiva. Talvez isso se explique porque as línguas indo-europeias têm uma lógica totalmente diversa, enfatizando a “palavra” (que corresponde a uma ideia), enquanto que aqui o ênfase é dado ao “conceito”, construído a partir de ideias desagregadas. Isso é representado por um “ideograma”, que não é uma “letra” mas uma “grafização” de uma ideia ou de um conceito. Vejamos um exemplo: “Japão” diz-se “Nippon”, o que se escreve assim em kanji: 日本. São dois kanjis: o primeiro - 日 – significa “sol” e o segundo - 本 – significa “origem, início” (mas também pode significar “livro” porque o livro é o “início do conhecimento”). "Japão", assim, é a origem do sol, ou seja, o país do sol nascente. Estudar japonês é um exercício terrível para um estrangeiro porque nós, pura e simplesmente, não pensamos assim, não sabemos pensar assim. Mas pode ser fascinante e além de ser uma aula de língua é também um curso de antropologia. Quando me sinto a desanimar, lembro-me dum canadiano anglófono que conheci outro dia, que aqui vive há 20 anos, professor universitário e fluente em japonês e que me disse: "You speak French, right? Listen: I learned French and Japanese and French is much more difficult". Si vous le dites monsieur le professeur...

02/01/2011

Domingo de versos - Maria Gabriela Llansol



(Não gosto eu tanto da noite?) Todos os momentos
da noite me parecem
momentos perdidos
momentos que perdi
os mais perdidos


Maria Gabriela Llansol, Finita
Jodoigne, 2 de Janeiro de 1976